quinta-feira, 18 de abril de 2013

Um destemido e dois sabidos...


                                                                (... ou, dos feitos de Seu Adalberto, do Toím e do Zé!)
Enquanto as badaladas do sino da Matriz retumbam na manhã de um sábado, em 1944, convocando os fiéis para a Santa Missa, a família do Senhor Adalberto Lopes de Araújo se acomodava, espaçosamente, no primeiro banco da Igreja da Matriz. O filho, que iria se batizar, apazigua a cisma nos braços do comerciante Raimundo Sales, o padrinho.
Na celebração, o Padre Bonfim dirige-se à pia batismal e dá início à cerimônia do batismo. Já borrifara a cabeça de alguns inocentes com água benta, quando chega a vez do fruto do Seu Adalberto. O padrinho, com zelo de pai, apresenta-o à ablução.
- Qual o nome da criança, meus irmãos? Pergunta o sacerdote.
- É José... José Neide! Respondem, simultâneos, pai e padrinho. O reverendo pára, pensa e olha surpreso para o amigo e o repreende mais que esclarece: - Que é isso, Adalberto? Eu não posso batizar seu filho com esse nome. Neide é nome de mulher! Vamos colocar um s no final do sobrenome, assim ficará Neides, para disfarçar. Consentiu, incontinente, com um movimento de cabeça, pois, embora de índole intrépida, não tinham coragem de discordar do rígido Monsenhor Bonfim. O Padre, como professor de Moral e Cívica, dá uma lição de cultura: - Neides, na língua grega, que dizer: aquele que nada bem e, já que José Neides renascerá hoje, da água e do espírito, entrará para o reino de Deus nadando. E arremata, em latim: - Nisi quis renatus fuerit ex aqua, et Spiritu Sancto, non potest introire in regnum Dei.
O menino cresceu, vivaz e travesso, nas margens do Rio Poti, mas nunca aprendeu a nadar a não ser pela aguda intuição que o fez mergulhar nas entrelinhas das páginas da história, quando se tornou um excelente professor e um mestre na irreverência. Antes, o destemido Adalberto trabalhava firme para o sustento da família. Aguentar os filhos frequentando o caríssimo Instituto Santa Inês, tinha que suar, e muito.
Perdurava a herança tenebrosa de uma sombra – o Prof. Luiz Bezerra a chamou de a época nefasta do cangaceirismo – que transformara Crateús num Faroeste Mirim. Era o tempo irrequieto de UDNs e PSDs. Época em que, quem “tomava” o poder para ficar “de cima” recebia os despojos de uma Prefeitura e se guarnecia por forças especiais de proteção. Adalberto era uma destas forças.
Na primeira gestão do Prefeito Raimundo Soares Rezende, a cidade estava abarrotada de cachorros, que perambulavam pelas ruas. Não havia campanha de vacinação, muito menos correição e, pelo mês de agosto, um cachorro doido mordeu um cidadão que veio a óbito. Convocam Adalberto para a complicada missão de Matador de Cachorros! A bola – carne envenenada com chumbinho e vidro – era jogada ao esfomeado cão que se retorcia em dores e, lentamente, morria. O desbaste foi grande. No Beco da Galinha Morta, um cidadão chamado Arnoud, apontou uma arma para o peito de Adalberto e gritou: – Assassino! Você matou meu cachorro! Numa impressionante rapidez, o funcionário municipal também aponta um revólver para o oponente e com firmeza avisa: - Estou executando um trabalho que me mandaram fazer e, se você não tem coragem de atirar, guarde logo essa porcaria, porque quem vai atirar sou eu! Seguiram, os dois pais de família, rumo as suas casas.
Matar cachorro era um serviço indigesto e disso não gostava... Sentia-se à vontade mesmo era em desmantelar os comícios dos comunistas, promovido pelo professor Luiz Mano, com um bando de meninos batendo latas. O amigo Pe. Bonfim lhe dizia: - Adalberto, não vamos deixar esse povo dominar a gente! O comunismo é o braço direito do diabo! Ainda tem o corpo chamuscado, desde o dia em que botou abaixo a porta da Sede do Partido e jogou querosene em tudo. O fogo consumiu os livros, devorou os móveis, esfarelou até os cartazes pregados nas paredes. Um dia, por descuido de rotina, a sombra de um ente traiçoeiro chamado Julião - dizem que contratado pelos comunista - o esfaqueou de imprevisto, na esquina da Rua Pedro II com a Rua Cel. Zezé. E por uma questão de reza e sorte, livrou-se da morte.
Das bandas do Maranhão tem boas recordações e, lamentavelmente, uma muito ruim. Alegra-se relembrando a profissão de marreteiro, quando vendia de um tudo nas cargas de burros, divertindo-se nas festas de desobriga, quando acompanhava os padres em celebrações de missas pelo interior da terra do “mar que corre”, confessavam e comungavam o povo, livrando-o do pecado mortal. De quando, embriagado, criou uma confusão num bordel em Palmeiral de Esperantinópolis, e lhe deram um tiro na perna, a recordação é dolorida. Disseram-lhe: - Não vamos lhe matar hoje não, ceará, mas você vai levar um presentinho das margens do Rio Mearim. Nos tímpanos ainda retinem o estampido do tiro que lhe quebrou a perna: Paaaa!!! Quebraram-na, no mesmo canto, mas desta vez foi o Dr. Fernandes, pois o osso colara totalmente desencontrado, deste então anda apoiado numa bengala de jucá, a sua nova arma!  Óh, é o véi da Bengala! Apelidava-o, o povo!
Um dia, apoiando o irmão Antônio Lopes, proprietário de uma tira de terra na Lagoa das Pedras, trocara tiros com os Brás, uma gente do lugar, e afirmara para o Juiz Dr. Olavo Cardoso que as balas que saíram do seu revólver, calibre 44 smith wesson, só foram para assustar e não tinha  intensão de matar ninguém, daí a longa perseguição que sofreu. Lembra-se de quando o Sto. Mamede entrou na sua casa, acompanhado por 13 soldados da polícia e se a sua esposa não tivesse a intuição de contar os militares que saíram, um a um, até 11, não descobririam os que se esconderam em tocaia, para o liquidar.
Embora com a fama de valentão, agia quase sempre como o intuito de um Robin Hood, defendendo os mais fracos. Numa seca grande, quando os alimentos da CAN, acompanhia de alimentação do governo, estavam guardados nos Armazéns particulares do Senhor Tobias Rezende, ele quebrou o portão e distribuiu os alimentos para os pobres. E foi mais um motivo para que a polícia, acautelada, andasse atrás dele.
O filho mais velho, Antônio Martins, herdou o temperamento do pai, mas a vida o moldou num ser pacato, no irreverente e alegre Auxiliar Administrativo da Escola Santa Inês, dono do mercadinho “Faz Raiva”. O pedagogo Toim chegou a fazer um curso de 20 horas de Inglês e, inacreditavelmente, aprendeu foi francês, uma única frase que, na brincadeira, rapidamente pronuncia e que só ele mesmo sabe traduzir: “Le cou gemiele piroule”. Gostou tanto da vida na caserna que, após prestar serviço militar no Exército de Crateús, se alista para servir a Aeronáutica em Fortaleza. Só escapou da perseguição das Patrulhas, porque o Marechal Teixeira Lott respondeu-lhe uma carta de apelo e intercedeu em seu socorro. Mas se você encontrar o Toím, por aí, e o cumprimentar: - Ei, Araújo, como vai? Ele, de imediato, responderá: - Doido é você!
O José Neides, intelectual e exemplo de arrojo na família, é o filho mais novo que percorreu a trajetória dos que insistem e não desistem, confirmando que os grandes feitos não são conseguidos pela força bruta e sim pela perseverança. João Alberto Barreto tinha vindo de Fortaleza para ser Diretor do Colégio Regina Pacis e contratou José Neides, pela caixinha do colégio, ficando de olho na disposição do um vigia, que se matriculara no Curso Normal. E vai, lentamente, galgando os degraus de uma carreira: de Servente a Porteiro, de Porteiro a Auxiliar de Biblioteca. Conclui o Normal e faz um Curso de Filosofia. O João Alberto se dirige ao Delegado de Educação, Prof. Luiz Bezerra, vulgo Prego Dourado, para dizer que vai contratar Zé Neides, como professor.
Prego Dourado se assusta: - O filho do Adalberto? Pelo amor de Deus, não! Chega de gente valente por aqui! João insiste, e o Prof. Luiz resolve conversar com o Zé. Gostou da conversa (Você tem uma boa palestra, José!) e o emprega. Antes, José teve que ir a Fortaleza trocar os contratos. Um burocrata da secretária de Administração, ao receber um formulário preenchido reclama: - Meu amigo houve um engano aqui! Em Novo cargo você colocou professor! Que é isso?  Após as explicações, o funcionário fica pasmo de ver como um vigia ser torna um Professor. E não ficou por aí, não! De excelente professor chegou a vice-diretor, atingindo o patamar máximo de Diretor do Colégio Regina Pacis. O final da sua carreira foi no Centro de Educação de Jovens e Adultos Prof. Luiz Bezerra, o Ceja, onde deixou a última mensagem filosófica, plantando uma exuberante Dama da Noite, no canteiro que tem uma plaquinha com os dizeres “Jardim José Neides”.  A planta exalava um aroma inebriante ao anoitecer, como a lembrar que sempre fica um perfume nas mãos daquele que nos oferta flores, ao contrário de Seu Adalberto que, de vez em quando, oferecia era o perfume das balas.
Raimundo Cândido

José Alberto de Sousa disse...
Cuidado com Raimundo escuitador, 
não sei se ele se vale de uma boa memória 
ou se anota tudo o que ouve 
para escrever uma formidável estória.

Um comentário:

  1. Cuidado com Raimundo escuitador,
    não sei se ele se vale de uma boa memória
    ou se anota tudo o que ouve
    para escrever uma formidável estória.

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