quinta-feira, 2 de maio de 2013

Buritizinho - Um ninho de Beija-Flor


                                            

Como abstraído coração, a natureza deve ter suas razões que a própria razão desconhece, mas não precisava ser tão cruel! A dosagem de fel que nos impôs em amargor, nos últimos três anos, em muito superou o mel que nos fez degustar, pelos anos anteriores ao 2013. E mesmo beneficiada em fontes perenes de água cristalinas, as mágicas árvores do Buritizinho sabem, pressentem e obedecem, fielmente, às ordens da mãe Terra, pois suspenderam até as floradas das árvores, por toda lombada da serra. As abelhas, jandaíras, irapuás, tubibas, manduris e até a valente italiana, em exames revoltos, debandaram levando consigo a arte do suco das flores.
                Na garupa de uma potente moto, pilotada pelo poeta do Tatu-bola Edmilson Providência, subimos a Serra da Ibiapaba, dois aventureiros incansáveis, rumo à terra dos Urbinos. Avista-se uma beleza ímpar à medida que se percebe a dificuldade em chegar. As rampas íngremes, as colinas deslizantes que, ano a ano, são consertas para melhorar o acesso, mas uma temperamental ambiência, guardiã da região, destrói tudo, pois um rico tesouro é para ficar isolado mesmo, bem resguardado, firmemente protegido. Contradizendo o alerta de abandonar a região, detonado pelas esquivas abelhas ao pressentirem uma escassez feroz, paramos para apreciar um colorido Beija-Flor construindo um frágil ninho, como a nos dizer: - Este é meu torrão! Não abandonarei meu lar, mesmo padecendo de seca atroz! Pacientemente, num esforço hercúleo, ruflando 80 vezes por minuto, o impensável malabarista alado gira em torno do corpo, fazendo um oito com as asas, hora parando no ar, qual potente helicóptero, hora em macha à ré, para depositar felpudas fibras coladas com salivas e costuradas com teia de aranha na sua morada. Edificava uma tigelinha de brinquedo na ponta de um fino galho de Jatobá. Foi a delicadeza sublime deste pequeno ser que despertou-me para a imprescindível leveza do lugar... Então, intuitivamente, ousei afirmar: - Amigo Edmilson, estamos pisando no ninho de um Beija-Flor!
                Centenárias figueiras vigiam os córregos de águas potáveis, que nascem das fontes perenes, brotando das areias filtrantes nos troncos das Gameleiras e escoam por um aclive de 800 metros. O precioso líquido que escorre não chega ao ressequido sertão, pois os animais, as plantações e o talude natural da Serra o absorvem de volta, uma forma de recomposição.
                Caminhamos por uma convidativa, mas árdua, vereda repleta de enormes jatobás, angicos, sabiás, pau-arco, aroeiras. Pulamos arruinadas cercas de madeiras, passamos por sonoras grotas, desviando-se dos galhos caídos, subindo e descendo morros e já achávamos que não chegaríamos a lugar nenhum. De repente, o autor da música Rola bola Tatu-bola, aponta para chão e mostra a marca de uma pata, como a de um grande cachorro, e me avisa: - É recente, e está aqui por perto!
                Tenho a impressão de que o cansaço espanta o medo da gente. Seguimos em frente, temerários aventureiros desprotegidos de tudo, sem botas, sem armas, sem bússola e sem rumo, só com a cara e a coragem. A surpresa boa é a que chega quando a gente menos espera. E quando o inesperado lhe sorri, descortinado o Jardim do Éden, você sorri de volta, em êxtase! Estávamos na Casa de pedra e não sabíamos para onde olhar, pois tudo é belíssimo! Resolvemos subir os paredões de pedras, no mais alto dos picos ali existente, para nos deslumbrarmos com a revelação do altar da natureza. Mandacarus, coroas de frades e diversas bromélias espinhosas brotam das pedras avermelhadas, queimadas pelo puro oxigênio do ar. Nota-se a presença de muitos roedores, chamados mocós, e supomos a presenças das perigosas cascavéis, pois são partes inseparáveis de uma mesma cadeia alimentar. 
                Uma visão esplêndida, no meio de uma floresta intacta, tínhamos uma pincelada da obra de Deus na nossa frente. Imensos blocos de pedras inacreditavelmente equilibrados sobre um dedo pétreo, como um jogo de malabares, que se fixou no espaço e no tempo. A Casa de Pedra do Buritizinho é o lar dos Duendes e dos Magos, que nos vigiavam com seus olhares de espreita. Chagávamos a ouvir os seus silêncios perscrutadores no rico santuário repleto de liberdade e paz!
                Descemos pela mesma trilha que subimos e uma serenidade nos acompanhou, diria até, uma completude de existência que faltava em nossas vidas: a saciedade do belo e do esplêndido na obra de Deus!
                Urbino é uma famosa cidade italiana, situada no topo de um morro e que possui o maior conjunto arquitetônico de casas antigas da história mundial, preservadas dentro de suas velhas muralhas. A cidade que descende dos extintos povos úmbrios é o lar do famoso pintor Rafael, Rafael Sanzio de Urbino, um dos grandes mestres do Renascimento Italiano. Portanto, não é de se estranhar que o Buritizinho, do patriarca Urbino Fecundes Menezes, seja uma das mais bela obra de arte da natureza.
O Miguel Menezes, guardião e protetor, um ramo verde do velho tronco dos Urbinos, o antigo Senhor das terras de Buritizinho da Serra e da fazenda Roma no sertão, nos levou para conhecer uma fonte jorrante de água mineral, sob a copa de uma centenária Gameleira, cercada por raízes aéreas, a qual me pareceu a cabeleira cintilante da Árvore das Almas no filme Avatar. Admirados, olhávamos o precioso líquido jorrar do seio da terra, borbulhando, gota por gota, para dar vida àquele ambiente sagrado, numa época de seca histórica no Estado do Ceará.
O velho Urbino Menezes criou oito filhos entre as viagens do sertão a serra, de Roma a buritizinho, de Buritizinho a Roma. O José, o Júlio (meu avô!), o Cícero, o Pedro, o Urbino, a Mariquinha, ana Joaquina e a Maria José que cresceram e ganharam o mundo com o que assimilaram nas experiências do topo da serra. Viver e conviver, ciência e sabedoria que  se adquiria ali, pelo olhar, pela magia do lugar.
Da despensa, onde Pedro Urbino guardava o que se fabricava no velho engenho à bolandeira, as rapaduras estavam sumindo. Notou um pequeno orifício entre os tijolos da parede e resolveu pegar o gatuno. Selou o cavalo e avisou: - Meu povo, eu vou para o Sertão! Não andou muito, amarra o cavalo na sombra de um Jatobá e, na surdina, volta ao depósito com uma corda enlaçada. Fica de prontidão. Não demora na tocaia quando vê os cinco dedos de uma mão penetrando vagarosamente por um orifício, tateando na penumbra, em busca da doce rapadura. Rapidamente prende aquele braço sorrateiro nas linhas do telhado e sai para o ver o Zezinho, seu amigo larapio, se estrebuchar como um bezerro amarrado.
Um dia Pedro selou dois cavalos e foi a cidade roubar a Maria Mathias e galoparam até Castelo do Piauí, para a lua-de-mel. Os irmãos da moça raptada, também à cavalo, seguem no encalço, deixado pelas trilhas do Piauí... Ou Pedro casa ou morre. Cícero Menezes, o mano protetor, corre em seu socorro. O encontro ocorreu no coqueiral, onde haviam armado umas redes. Cícero, arguto e corajoso, notando que o confronto estava no empate, dois irmãos para cada lado, toma a frente e faz a negociação: - Aqui, ninguém vai morrer, mas também ninguém vai casar! Chegaram a um acordo, o dote pelo rapto da donzela seria o cavalo em que a virgem fugiu e foram todos, tranquilamente, para suas casas. Depois de Maria, depois de Rosa, e depois de muitas outras, Pedro resolveu se casor com Nelsa e até penso que poeta Drummond se inspirou para o poema Quadrilha nas artimanhas de Pedro Urbino. (O Fazendeiro Milton Menezes, em tom de brincadeira, disse-me: - O Tio Pedro recorda-me um professor que conheço, um tal de Raimundinho! Fiz de conta que não ouvi.)
Um dia, todos levantaram voo do patamar encantado do Buritizinho. Pedro rumou ao Piauí, pois já havia feito veredas por lá. Cícero e suas irmãs pousam na Fazenda Roma, nas margens do Poti, que estava a precisar de um “Papa” entendido nas artes agropecuárias. Júlio Urbino Menezes sela um cavalo com cochonilha acolchoada e ruma para a Fazenda Ponciano. Há muito estava de olho na baixinha Maria de Matos, filha do próspero fazendeiro João de Matos, pega na mão da eleita e se aconchegam na fazenda Pereiros, para que esse escriba de linhas tortas pudesse lhes escrever esta historinha sobre o Buritizinho.
A tarde se esvai, sonolenta e triste, e os dois aventureiros descem a ladeira dos Tucuns. Olho para trás e vislumbro, na aba da serra a imagem da Casa de Pedra que adormece, como os beija-flores que, à noite, também hibernam, para retornar amanhã revestida de sagrada luz, em todo seu esplendor.
Raimundo Cândido

Ivens Mourão disse...
Parabéns pelo artigo e pela sensibilidade sobre a realidade do Sertão. Você e o Edmilson teriam que ser criados, caso não existissem.

2 comentários:

  1. Raimundo Cândido
    Parabéns pelo artigo e pela sensibilidade sobre a realidade do Sertão. Você e o Edmilson teriam que ser criados, caso não existissem.
    Ivens Mourão

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  2. Excelente! Sua escrita bordam linhas com condão de ouro. Espetacular ler-te. Um grande abraço.

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