O tablado dos acontecimentos
históricos, ornamentado por galhos retorcidos de aroeiras, angicos, juazeiros e
catingueiras, esquadrinhado pelos preás, tatus-bola e veados-catingueiros foi,
e continua sendo, o lugar de épicos, comédias e tragédias de um povo aguerrido
no seio da caatinga inóspita. Por aqui, sucederam-se grandiosas obras teatrais
de fazer inveja aos gregos Ésquilo,
Sófocles e Eurípides.
Desumanos Mestres-de-Campo são convidado por Francisco Garcia
d'Ávila, proprietário da Casa da Torre, na Bahia, para aniquilar os índios, por
toda essa região.
A expansão pastoril do Castelo da Torre não conhecia limites,
com uma audaciosa ganância, às avessas ao mar, Domingos Jorge Velho e Diogo
Afonso Sertão, dos Ávilas, vinham desbravando o Piauí. E os Kara-thi-us, de
lanças e arcos nas mãos, não puderam combater os bacamartes de boca sino
cuspindo raiva e fogo na rudimentar guerra de um agreste palco, configurando-se
a primeira derrota do destemido sertão.
Apaziguado os ânimos dos gentios, vai surgindo, pouco a
pouco, um povoado nas margens do rio das piranhas, seduzido pelo aromático
estrume dos currais e pelo ecoar dos aboios a tanger o gado.
Do tronco da velha fazenda Piranhas, nas margens do Poti,
esgalha-se a futura Vila Príncipe Imperial, esparsa e bucólica num esboço
rústico, mas já exibindo cenas de um tumultuoso velho oeste, necessitando de
periódicas intervenções dos emissários da arcaica cidade de Oeiras, nossa
primeira capital. E já vibrava, pelas empoeiradas ruas, um DNA aguerrido das
famílias Melo e Mourão, que duelavam entre si, a sangue e ferro, conclamando o
duro pulso de uma força policial.
Foi tal qual uma Guerra interna, mas estendeu-se por
pastagens longínquas, bem fora do nosso domínio, atraindo os olhares dos
administradores da Província e os rancores Imperiais. Do alto de seu trono, Dom Pedro II ordenava
ao Pe. José Martiniano de Alencar: - Acabem com a raça dos Mourões!
Era Alexandre da Silva Mourão IV, caráter belicoso, que atraía
para si todas as atenções numa época de irrefreado cangaço. Quando não
guerreava diretamente, usava a sabedoria de submeter o inimigo sem combate, que
o diga o Tenente Felix Bandeira, com 40 soldados bem armados, cansou de
percorrer as veredas dos sertões no encalço do ardiloso e desalmado cangaceiro,
filho do célebre Alexandre II, que fizera parte da Batalha de Jenipapo
enfrentando as tropas do português Fidié, que tinha pretensões de manter esta
região sobre o domínio lusitano, surgindo assim, o Movimento Separatista de
Oeiras. Uma manifestação genuinamente brasileira.
Foi no tempo em que, nos conflitos dos sertões bravios, os
viris sertanejos ao falar em guerra, até as suas palavras tinham o peso do
chumbo e a ligeireza das flechas. Como a capital Oeiras, Cratheús também
proclamou uma independência dos domínios lusitanos, é o que afirma um trecho vago
de um antigo documento: “O povo de Príncipe Imperial e Marvão, por pretenderem
levá-lo ao criminoso Partido de Libertação, advertimos que não tendes
proporções para a Independência. Falta-vos agricultura, arte, ciência,
manufatura, comércio, dinheiro e, sobretudo, Exército e Marinha”
À sombra das ordens do Cel. João de Araújo Chaves, 300 homens
dos Sertões de Crateús e Inhamuns, a 13 de março de 1823, juntaram-se as tropas
de vaqueiros e roceiros do Piauí, para um combate feroz nos barrancos do Riacho
Jenipapo, próximo à Vila de Campo Maior.
Quando Dom Pedro I, às margens do Ipiranga, deu o grito de
“Independência” não se derramou uma só gota de sangue, mas na sangrenta Batalha
do Jenipapo, que assegurou a unidade territorial do Brasil, o combate foi
brutal, causando a morte de mais de duzentos bravos sertanejos, toscamente
armados com facões, espingardas socadeiras, foices e até mão de pilão, em cinco
eternas horas de agonias, tempo que durou a malograda batalha e que foi uma
vitória de Pirro para Fidié, derrotado logo em seguida, na vila de Caxias, no
Maranhão.
O poeta da Itabira, Carlos Drummond de
Andrade, em reconhecimento à ação dos combatentes independentes de jenipapo,
imortalizou-os no poema “Cemitérios”: “No cemitério de Batalhão os mortos do
Jenipapo / Não sofrem chuva nem sol; o telheiro os protege / Asa imóvel na
amplidão campeira.”
A lendária vida dos rudes homens do cangaço, expulsos de suas
terras, tostados pelo sol e amaldiçoados pelos sangue das almas que abateram, é
um padecer sem fim. E Alexandre Mourão IV, o mais famoso cangaceiro dos Sertões
dos Kara-thi-us, vê a oportunidade de se redimir dos inúmeros crimes com uma
Revolução que se alastra no Maranhão, A Balaiada. Alista-se aos 200 soldados que sobem à Serra
dos Tucuns sob o comando do Cap. Antônio José Luís de Oliveira, para ser
absorvido de seus delitos e poder voltar a uma legalidade.
No Maranhão, os ricos fazendeiros, num sarneísmo antecipado
da aristocracia rural, por conta de uma dura crise econômica impõem perversa
fome e maus-tratos aos vaqueiros e escravos, que se incitam e começam uma
revolução na terra em que nasceu e viveu o poeta Gonçalves Dias. O vaqueiro
Raimundo Gomes, o balaieiro Manoel dos Anjos e o quilombola Cosme Bento
emprestaram coragem, força, alma e sangue aos revoltosos balaios.
Em 1841, Alexandre Mourão IV, e alguns de seus parentes
crateuenses, seguem uma tropa de 8 mil soldados, com farto armamento de guerra,
para a Vila de Caxias, para lutar ao lado do Coronel Luiz Alves de Lima e
Silva, aniquilando impiedosamente 12 mil pobres sertanejos, vaqueiros,
agricultores e escravos e, com isso, o desumano Coronel Barrão foi premiado,
passando a se denominar Duque de Caxias e o nosso herói cangaceiro retorna ao
seu torrão, livre, puro e sem piedade, como um carcará que revoa pelo sertão!
Em tempo de guerras
os homens viram tigres, dizem. E deve ser verdade, pois estávamos até no maior
conflito armado da América do Sul: A guerra do Paraguai! Um estéril combate em
que morreram mais soldados por doenças, fome e exaustão física do que
propriamente pelas ação das balas. No livro, A retirada da Laguna de Visconde de
Taunay, capítulo XIX em que fala da passagem do Rio Miranda, em cheia alta,
lemos o feito heroico do soldado Damásio, um corajoso crateuense, quando
tentavam passar quatro pesados canhões pelas correntezas do rio pantaneiro,
sobre troncos de árvores, tracionados por cordas e polias. A primeira peça,
passa tranquila, com estrepitosa aclamação dos soldados do outro lado. Já a
segunda peça, escapou das amarras e caiu no fundo do rio. Leiam agora na
própria “voz” de Taunay: “Um soldado, cujo nome merece ser recordado, Damásio,
ofereceu-se imediatamente para mergulhar no ponto da imersão, e, tendo
conseguido reconhecer o fundo, pode, após duas ou três emersões, para tomar
fôlego, passar em torno da peça uma corda de que se provera e serviu para a
puxar. Foi a lição aproveitada quanto aos cuidados tomados com a amarração das
demais bocas de fogo e apressou o resto da operação, permitindo completar a
passagem à tarde daquele dia e na manhã seguinte.” Desta guerra, conhecida
também como o massacre dos meninos, nenhum pais envolvido teve algum proveito:
O Paraguai com 100 mil mortos, entre soldados e crianças inocentes, ficou em ruina total, já o Brasil, com a
fragilidade da estrutura militar exposta e 50 mil brasileiros mortos por
doenças e pelos rigores de um clima!
Quando o beato cearense Antônio Conselheiro, espectro vivo a
rezar ladainhas, liderava 20 mil sertanejos na comunidade de Canudos, na Bahia,
o Exército Brasileiro tentou por três vezes aniquilá-los, na rústica arapuca de
um arraial. De Belo Monte, que na realidade era um vale, o radical devoto
dizia: - A República é materialização do reino do anticristo na terra. Quando,
no dia 5 de outubro de 1897, a 4ª Expedição Militar disparou um tiro de canhão
atingindo a torre da Igreja, os sertanejos que já sem água e sem comida e mesmo
assim não se renderam, um crateuense estava lá! Francisco Lopes Ferreira Lima
incorporado a um batalhão, viu o massacre de milhares de marginalizados do
sertão nordestino. Presenciou quando um velho, uma criança e dois sertanejos, os
últimos insurretos, ficaram honrosamente de pé, na frente de 5 mil soldados que
rugiam como animais para o desfecho final da batalha e também viu quando os
agarraram pelos cabelos, dobraram-lhes as cabeças, engargalando-lhes os
pescoços e, francamente expostas suas gargantas, os degolaram.
Nos, Crateuenses, lutamos até na floresta Amazônica
participando da conquista do território do Acre. Foi quando chegou por aqui, no
início do século, o conterrâneo José Francisco da Silva que guerreou ao lado do
Cel. Plácido de Castro, e trouxe a notícia da expulsão dos invasores bolivianos
da região. O Acre é o Estado Brasileiro que todo dia 15 de junho, data da
elevação à condição de estado, hasteia três bandeiras em seus pavilhões: a Brasileira,
a do Acre e a do Estado do Ceará, em homenagem aos heróis cearenses-crateuenses
que lutaram na Revolução Acreana. Podia hastear a bandeira crateuense, também!
Não fomos a 1ª Grande Guerra mundial, em 1914, chamada de
Guerra das Trincheiras onde os soldados morriam se contorcendo como baratas
pelos corrosivos gases mostarda e cloro. Mas em (des)compensação estivemos na
Sedição de Juazeiro, um ano antes da seca do 15. Na remota década de 20, quando o menino Norberto
Ferreira Filho não estava entregando pão da padaria de seu pai ou colocando
água das cacimba do retiro, ficava ouvindo as conversas do velho sapateiro
Moises Almeida que havia tomado parte na Revolta de Juazeiro do Norte, nos
Sertões do Cariri, integrando as forças do Governo Federal que lutaram contra
os jagunços de Floro Bartolomeu e do Padre Cícero Romão Batista. Ferreirinha
aprendia a arte de Heródoto e ficou sabendo que o velho Moises havia perdido a
guerra e que o excomungado Padim Cícero permaneceu como eminência parda na
política cearense, com uma população de sertanejos venerando-o, feito santo,
feito profeta.
Já na 2ª Grande Guerra estivemos em número bem maior, pois o
Exército saiu a catar soldados, ou se ia para o fronte de batalha ou para a
Guerra da Borracha, enfrentar animais perigosos e a maleita, no seio da
Floresta Amazônica.
Os Expedicionários brasileiros-crateuenses foram incorporados
às tropas americanas e ficaram entrincheirados nas encostas do Vale do Reno, em
Monte Castelo, onde enfrentaram a 232ª Divisão de Infantaria Alemã, à
temperatura de 10°C negativos e com neve até o peito. Ouviam, constantemente,
os disparos dos inimigos e os estrondos das granadas que pipocavam ao lado. O
herói crateuense, Francisco Bezerra Lima, o Chico da Doninha, entregador de
água em jegue e amigo de Seu Ferreirinha, foi ferido duas vezes no eufêmico
“Teatro de Operações” e recebeu um certificado de liberação, para ir para casa.
Os alunos do Instituto Santa Inês, tendo à frente a
professora Madrinha Francisca, receberam o guerreiro cantando: “ Você sabe de
onde eu venho? Das margens crespas dos rios, / Dos verdes mares bravios / Da
minha terra natal. / Por mais terras que eu percorra, / Não permita Deus que eu
morra / Sem que volte para lá; / Sem que leve por divisa / Esse "V"
que simboliza / A vitória que virá: / Nossa vitória final, / Que é a mira do
meu fuzil, / A ração do meu bornal, / A água do meu cantil, / As asas do meu
ideal, /A glória do meu Brasil.” Foi uma grande festa para recepcionar um herói
crateeuense!
Mas nem tudo são flores na vida de um ex-combatente, veterano
de guerra. O Chico da Doninha, cidadão educado e tranquilo, não podia
experimentar a danada da cachaça Lagoa do Barro. Quando chegava num bar, só
ficava o dono com as pernas tremendo, atrás do balcão. Os vapores do álcool
liberavam os pesadelos do “Teatro de Operações” e o coitado do Chico ouvia os
gritos dos companheiros feridos e os estrondos das granadas. Então, como em
Monte Castelo, desfechava tiros a torta e a direita e jogava facas afiadas ao
encontro dos troncos das árvores.
O povo, que olhava das janelas entreaberta, penalizado dizia:
- Coitado, pegou a maleita da guerra!
Certo fez o novo orientense, crateuense Sargento Hermínio
Aurélio Sampaio - que um dia, no prédio quadrado da atual prefeitura, atocaiou
o bandoleiro Alexandre Mourão IV- ele resolveu se transformar em herói e na
madrugada do dia "D", o momento mais importante de 2ª Guerra, enfrentou as gargalhadas sinistras dos morteiros inimigos.
Naquele fatídico dia, estava com uma pá na mão e preparava uma posição para um
Fuzil Metralhador, sempre a gritar: - Precisamos avançar! Venham
comigo! Súbito, uma rajada certeira
e mortífera o fulminou, ali tombou o Sargento
Sampaio que não quis passar, como o Chico da Doninha, pelas maleitas de guerra nas
ruas de sua cidade, resolveu permanecer na Itália, sepultado no cemitério de
Pistola, onde estão os corpos dos membros da Força Expedicionária Brasileira. E
pelos primeiros indômitos karatis que tombaram na árida caatinga, pela geração
de Mourão com bacamarte na mão, pelo soldado Damásio, pelos Franciscos, pelos
Moises, e por todos os outros extraordinários guerreiros crateuenses, damos
vivas aos nossos heróis!
Raimundo Cândido
(A crônica “Cratheús
Aguerrida” não se pretende alçar de rigidez histórica, mas seus dados podem ser
comprovados nos livros: Fatos e Cousas do Passado e Coletâneas 1 e 2 de
Norberto Ferreira Filho, Meus Avós de Raimundo Raul Correia Lima, Inhamuns,
Terra e Homens de Antônio Gomes de Freitas, A retirada da Laguna de Visconde de Taunay e Diversos
Documentos antigos de Crateús que estão no Instituto Histórico e Geográfico do
Piauí. E aos que me cobram precisão de
fatos e épocas peço, se possível, que coloquem esta narrativa na gaveta dos
pretensos textos literários.)
José Alberto de Souza disse...
Esta crônica Cratheús Aguerrida" tem a sua importância marcante na medida em que faz um levantamento sucinto de todo o passado heróico dessa brava gente do Ceará. Através de todos expoentes épicos que deixaram seus nomes registrados em diferentes obras de autores consagrados. E que Raimundo Cândido teve a paciência de compilar, demonstrando assim como historiador mais uma de suas facetas.
Esta crônica Cratheús Aguerrida" tem a sua importância marcante na medida em que faz um levantamento sucinto de todo o passado heróico dessa brava gente do Ceará. Através de todos expoentes épicos que deixaram seus nomes registrados em diferentes obras de autores consagrados. E que Raimundo Cândido teve a paciência de compilar, demonstrando assim como historiador mais uma de suas facetas.
Esta crônica Cratheús Aguerrida" tem a sua importância marcante na medida em que faz um levantamento sucinto de todo o passado heróico dessa brava gente do Ceará. Através de todos expoentes épicos que deixaram seus nomes registrados em diferentes obras de autores consagrados. E que Raimundo Cândido teve a paciência de compilar, demonstrando assim como historiador mais uma de suas facetas.
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