É a Praça da Matriz, exalando
as primeiras inspirações bucólicas, florejando num instante de puberdade,
alargando-se no poeirento chão de terra batida.
Na divagação sobre a Vila,
surge nas veias do historiógrafo-poeta uma vontade de versejar, mas como
afirmara João Brígido, um dos seus desafetos literário, faltava-lhe a tecla da
inspiração. E eis que, repentino, é desperto por um ruído agradável,
ininterrupto, vindo de longe, como se fosse a poesia chegando.
—
nhein...nhemheinin...renheinhein...onooonnnn...nheim...
Sai a porta, olhando para a
praça, e deslumbra-se com o que, naquela época, já se transmuta em momento de
saudade. O canto lamentoso, como um gemido de dor, que passa em frente à
Igreja, rumo a Boa Vista dos Correias. Quem ouviu, ouviu. Quem não ouviu, não
ouve mais o murmúrio doce do carro cantador puxado por uma junta de bois, o
primeiro veículo do Brasil. O carreiro caminha ao lado com o ferrão na mão, uma
vara comprida e pontiaguda. Comanda os bois com ordem vocais: —Ôooooo, êeeeeeeeee boi!—Õa, ôa Mimoso!
O escritor volta à mesa, para
terminar de descrever a vila, com o Rio Poti, os banhos no Curtume e as cruzes
enfincadas nos caminhos do sertão pelo monge capuchinho Frei Vidal da Penha,
mas o canto poético não lhe sai da mente, nhein...nhemheinin...do carro de boi
que descortina-se no horizonte decaindo para o poete, terra do poeta Coriolano,
um massapé torrado e brusco onde nasceu o valoroso e eterno touro fusco.
Por falar em príncipe dos
poetas, fundador da literatura do Piauí,que influenciou Castro Alves em alguns
versos no épico Navio Negreiros, José Coriolano, ele mesmo, relata em carta a
um amigo que o marco inicial da cidade de Crateús foi a construção de uma
casinha, para abrigar os frades franciscanos que vinham em missão de
evangelização, no povoado de Piranhas. Posteriormente, segundo ele, no mesmo
local foi erguida uma igreja, que hoje é a Matriz da Diocese. Antes de uma
capela, portanto, houve um alojamento, para o descanso dos franciscanos que
percorriam os rincões do Vale do Poti, na nobre missão de pregar o evangelho.
Era uma rústica latada de pau-a-pique com cobertura de folhas de coqueiros,
entre os mandacarus e algumas frondosas árvores, onde se amarravam os animais.
Da primeira capelinha de
taipa(1769), no largo terreno central do povoado de Piranhas, principiou-se o esboço de uma Praça, que será
o pulsante coração da vila, a princesa do sertão.
Em 1770 é construída, no lugar do tosco
tapume, uma capela em alvenaria sólida, tijolos de 17 quilos, tão fortes quando
a fé que fervilha na alma do sertanejo aterrorizado pelas imagens horríveis de
um purgatório, pintada pelo Pe. Serafim.
O Cel. José Amâncio, sentado numa cadeira de balanço, na calçada de sua
casa, olhando para a mureta que circula a Igreja, predizia: -Nosso primeiro
sacerdote foi o Padre Serafim e o último será um Bonfim! Levando em
consideração uma era, ele acertou em cheio!
Com a chegada de uma imagem
esculpida por santeiros da Bahia, conduzida por escravos, em 1792, numa
fantástica viagema pé e a mando de Dona Luiza Coelho da Rocha Passos, a Praça
da Matriz ganhou novo impulso. A Catedral Senhor do Bonfim, de paredes espessas
e dilatáveis como a grossa artéria de um coração-praça, bombeia fôlego e vigor
que vitaliza a cidade. A capela de Dona Luiza cresceu de reformas em reformas
(Pe. Macedo, Pe. Rosa, Pe. Juvêncio e Pe. Bonfim) chegando à Catedral. A
construção das Torres da Igreja, como dois braços implorando aos céus,
rogando-nos bênçãos, completara-se com o assentamento da estátua do Cristo
Redentor, numa proteção divina.
Existia, numa das solitárias
esquinas da praça uma velha casa de taipa, teimosa ruína subsistindo ao
inclemente sol e às águas invernosas, que testemunhou o soerguer dos primeiros
casarões dos coronéis numa época de indultos fáceis e aquiescência de títulos,
comprados de acordo com as posses dos ricos fazendeiros. A antiga tapera viu subir
o serpenteado da fumaça dos fogões a
lenha em plena praça, escutou o barulho da fábrica de cigarro e ouviu o
tilintar dos vinténs jogados pelo janelão do sobrado da Rua Santos Dummont para
os desafortunados sertanejos na cruel seca de 1877. De um Quartel General, na
Rua Firmino Rosa, um heroico Capitão Peregrino mirava a torre da Igreja, e nem
imaginava o futuro duelo com os revoltosos esgotados, que vinham numa
interminável marcha de esperança e sonhos. E na Rua do Poeta José Coriolano,
onde já havia um busto lustroso estampado no ar, o
comerciante Mariano Raimundo Cândido sai, orgulhoso à porta, expondo aos raios
matutinos, o primeiro rebento da professora Maria Delite, sua esposa.
Como uma autêntica acrópole
grega, a praça exibe-se, naturalmente exuberante. Como um lugar sagrado,
sacrário da alma, o coração de um povo sofrido. Como uma poética sala de estar
que é constantemente remodelada de acordo com o mero desejo de um gestor, na
vontade de se perpetuar na sua estampa. Num forçado metamorfismo, uma
indelicadeza com um rico passado e, assim, a praça passa uma borracha no nome
de quem, intencionalmente a transforma. O Paço do resplendor ilumina-se por si,
e bem reluz!
Das missas campais, a do
cinquentenário da cidade foi inesquecível, com a inauguração de um obelisco
egípcio, um quadrante solar em plena praça, guardando, na base de concreto, uma
cápsula do tempo que ninguém leu. As
animadíssimas quermesses da Igreja, no mês de Junho, o tempo deletou... A mão que constrói, também aniquila, como o
cruel e huno Átila, e o belíssimo coreto circular, ao lado da catedral, foi
apagado. Cadê os Jovens que, após a
missa das 9 horas, iam se deliciar e paquerar na Sorveteria Itália que logo se
transformou num inferninho, chamado Barril?
E a noturna e velha praça, giroscópica, em circunvolução de verso e
reverso, com as flores-meninas, belas de olhar com cheiro de pétalas? Como afirmou um velho poeta: “A minha
saudade, até agora, rodopia, de tanto lembrar!”
Hoje, uma felicidade, como um
invisível vaga-lume, continua a vaguear pelo Largo da Matriz e se senta no
banquinho entre as flores de um jardim, aspirando ao aroma gorduroso de
presunto e ovos fritos, sem a malemolência opaca da antiga Vila Imperial e da
poética vida de outras horas. Um modernismo trouxe uma Praça de Alimentação,
com um desespero e uma pressa de viver, ouvindo a canção alegre de um povo
fingido e triste. E o saudoso vaga-lume da felicidade, sentado no seu banquinho
da praça, relembra uma canção triste, orquestrada no velho coreto da Matriz e
animando, no coração da cidade, o povo alegre e resplandecente de outrora.
Raimundo Cândido
.
Prosa bastante pictórica,
ResponderExcluirpinceladas que dão colorido
a um panorama telúrico,
numa cena cotidiana,
visão privilegiada
de artista observador.
Ainda repousam, adormecidos e esquecidos em alguns arquivos públicos e eclesiásticos, aguardando o paciente trabalho do pesquisador, importantes fatos e datas que poderão compor o mosaico da história do nosso sertão.
ResponderExcluirMELHOR PRAÇA DE TODA REGIÃO DE CRATEUS
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