Quem já esteve no epicentro de
um agitado pombal, com milhares de avoantes em revoadas aleatórias, percebe que
o calor é o pai da vida... E também da morte! A quantidade fabulosa de
pombas-de-bando que se assusta e levanta voo, simultaneamente, faz lembrar o
ruído de uma locomotiva resfolegando em marcha acelerada: - Ôooo...
Ôooo... O Pombal, uma colônia reprodutiva
gigantesca, é um forno inclemente pela alta incidência dos raios solares e pela
quentura viva, emanada dos corpos dos incontáveis columbiformes, desesperados
com a invasão do sacrossanto local de postura, e chegam a partir galhos, quando
pousam. Os caçadores não fazem pontaria, não miram... Atiram no bolo em revoada
constante e as coitadinhas das aves nem fogem dos estampidos das espingardas,
que só intensificam o calor, a escorrer das frontes concentradas de Júlio de
Maria e do certeiro mestre Doca, preocupados em não pisar numa cascavel que se
farta com os milhares de ovos e com os empenujados filhotes, postos ao leu pelo
chão irregular do carrascal arbustivo de ramos secos e retorcidos da inóspita
caatinga, próximo ao grande açude de São Francisco.
Sempre voando, em massa
prodigiosa, as ribaçãs deitam ao chão uma quantidade imensa de ovos, que atraem
de suas tocas os gulosos teiús e as terríveis cobras, mas também convida o
esfomeado sertanejo de sua rústica cabana, para o farto banquete a céu aberto.
À beira do açude São
Francisco, no crepúsculo vespertino, o caçador Quidé prepara uma invisível forja
e se camufla com galhos secos e sob um manto de terra batida, aguardando que as
avoantes, com os papos cheios de grãos maturados no chão ressequido da
caatinga, sementes de marmeleiros, de mufumbo, de bambural, de jurema e favela,
venham matar a incontrolável sede. Uma coluna cerrada, num acinzado denso,
aparece no horizonte como uma nuvem compacta que voa sem interrupção. A secura
é enorme, e elas descem num funil de turbilhão, tremeluzindo as asas de prata e
com uma plumagem de ouro esmaecida pelos últimos raios de sol. Os pássaros de
fogo pousam nas margens e, sem perda de tempo, mergulham a cabeça num glub, glub,
glub de desespero e sequer notam as companheiras sumindo na flor d’água, pelas
hábeis mãos de Quidé.
Depois que o bíblico povo de
Israel fugiu para o deserto e após muitos dias de fome, queixam-se a Moises: - Teria sido melhor que o
Senhor tivesse nos matado no Egito! Lá, nós podíamos, pelo menos, nos sentar e
comer carne à vontade! Deus manda um recado pelo Profeta: - Diga a eles que
hoje à tarde, antes de escurecer, eles comerão carne em abundância. E fez chover
uma incrível quantidade de avoantes, pássaros do fogo de carne amarga, fatigados
de um longo vôo numa rota de arribação!
Como os Árabes do deserto e os Judeus errantes, os
retirantes cearenses na grande seca de 1888, também foram salvos pela
Providência Divina por um bando incomensurável de avoantes, mas os irmãos sertanejos
não praguejavam pela dura sina imposta pelo cruel tempo, pois antes de tudo,
mesmo inocentes injustiçados, são uns simplórios no modo de vida e de
respeitável vigor de agreste alma!
No mês de setembro as pombas, zenaidas aureculatas, se
despedem do sertão nordestino e levantam vôo, como as andorinhas, arribam para
o longínquo sudeste. Vão nidificar nos canaviais de São Paulo e Paraná, onde encontram
uma alimentação abundante nos cotilédones de soja que brotam do chão, nos grãos
de trigo e nas sementes dos imensos arrozais, sendo consideradas pelos
agricultores sulistas como animais sinantrópicos e por isso, combatidas por
todos os meios, como uma pesada praga bíblica.
Como
um repentino sereno que libera o cheirinho gostoso de terra molhada, o calor dos
fogões liberta o alifático cheiro de um café torrando, ou o infiltrante anel aromático
de um peixe sendo frito ao meio dia, à hora da digníssima fome. A divina catálise do fogo foi, e sempre
será, uma afluência necessária... Principalmente na hora do almoço! Um vento
brincalhão passa pelo crepitar das brasas, de uma casa vizinha ao Ceja Prof.
Luiz Bezerra e nos traz um cheiro característico e raro, um petisco sendo
preparado com esmero, e indica a atividade recente de um caçador. O professor
André pergunta-me: - Oh, aí, Raimundo! Sabe que aroma é esse?
Desde
aquele dia, em que o caçador Júlio de Maria chegou em casa com um saco cheio de
avoantes,as quais tivemos de depenar e tratar com muito cuidado, que este aroma
e este sabor, de rara iguaria, não larga da minha mente!
Os espertos
caçadores, tentando burlar o negrinho de uma perna só, com seu cachimbo e com
barrete vermelho, não mais atiram, para não atrair os colegas do Saci Pererê, funcionários do IBAMA. Eles inventaram uma arapuca
feita com varas de uma única entrada, sem saída, e pegam, silenciosamente, dezenas
de avoantes enquanto essas tentam encher o papo pela capoeira aberta no eito de
um deserto sertão.
A
Caatinga, com seu crepitar de labaredas, cauterizando, purificando as
maturações orgânicas que estalejam aos meus ouvidos, nesta época impiedosa de contínua
seca, me fala de aspirações e de longínquas saudades, pois também tenho alma incerta
no eterno desejo de arribação!
Raimundo
Cândido
Alma de abnegado cria raízes profundas
ResponderExcluire ali se queda, aguardando
aves de arribação para conduzir
as sementes de seus frutos a solos áridos.
Que lindo e tão imensa profundidade
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