domingo, 23 de fevereiro de 2014

Padre Rosa – Hóstia, punhal e bala.

Admiro os historiadores quando, num esforço mais que braçal, utilizam-se de um afiado instrumento para apreender a(s) realidade(s) dos fatos: O pensamento na busca da verdade. Um filósofo, destes pós-moderno, chegou a afirmar: “... não há ninguém que veja a verdade sem pensar com ajuda de um olhar, e os olhos são sempre os olhos dos outros.” O que tenho de narrador-filosófico, além deste olhar difuso a me ofuscar, é uma grande curiosidade histórica, uma vontade de enxergar, entre findo olhares, um tempo antiguíssimo a procura de verdades. Tento entrever o murcho limo do passado, que nos espreita em cada esquina, munido unicamente deste estreito raciocínio de visão.  
Em suma, pensaremos no decorrido tempo passado pelo olhar dos outros! E assim, volveremos ao inicio do Século XX (Século Sangrento) nos Sertões de Cratheús, expondo olhares sem tentar corrompê-los.
                Decorriam os primeiros anos de 1900. No Ceará, acontecia a Era Aciolista. Antonio Pinto Nogueira Accioly frustrava toda expectativa do povo cearense criando uma oligarquia impiedosa que fez vistas grossas ao sofrimento do sertão, em anos de seca e, no desenho de um papel, construiu cinco pontes sobre o Rio Pacoti. O dinheiro apareceu nas contas do Estado. As Pontes é que nunca foram construídas.
                Entre dezenas de movimentos para derrubar Accioly do poder, o mais importante foi a Passeata dos Meninos. Liderada por mulheres cearenses, cerca de seiscentas crianças, todas vestidas de branco, com laços verde-amarelos e ostentando no pescoço um medalhão do Coronel Marcos Franco Rabelo, desfilaram pelas ruas de Fortaleza, cantando e sendo acompanhadas por milhares de pessoas. O Babaquara, apelido de Acioly, ordena que a polícia haja com rigor, ocasionando a morte de varias pessoas. A revolta só aumentou. O povo armou-se como pode para tirar o déspota do comando do Estado que, por fim, renunciou. Supõem-se outros olhares sobre a Passeata das Crianças, que a minha parca visão não pode alcançar!
                Em Crateús, tínhamos Aciolistas e Rabelistas exaltados em quase todas as esquinas.
                O velho sertanejo Furtuoso José de Sá, com a mente enevoada de cachaça e uma arma reluzindo na cintura, entrava no portão do Mercado Público a cavalo e vociferava: “Esse povo de Cratheús é todo sem-vergonha e ladrão! Os homens são todos Franco Rabelo e as mulheres frangas do rabão!”
                Um dos aciolistas mais ferrenhos da cidade era o vigário: Joaquim Gonçalves Rosa, o Pe. Rosa. Nascera nos Sertões de Cratheús, mas precisamente em Tamboril (antigo Arraial da Telha) e, ao sair do seminário, vem tomar conta do rebanho de ovelhas cristãs, da recente Vila Príncipe Imperial.
                No interior do Ceará predominava (?) uma cruenta servidão imposta pelo medo na alma do homem ingênuo e ignorante: “As coisas são assim porque são como são, sempre foram assim, sempre serão.” Os políticos, coronéis arrogante e opressores, e os padres oportunistas tiravam proveito disso e pactuaram uma tríplice associação: a oligarquia Accioly, o coronelismo de Giló e o sacerdócio do Pe. Rosa.
                No Distrito de Irapuá reinava insatisfação com o padre crateuense, pois o mesmo havia vendido todas as propriedades pertencentes à Igreja do lugar. Fora o sumiço de uma imagem, em ouro maciço, representando o padroeiro de Bom Jesus do Bonfim. O Pe. Rosa jogara uma maldição no ladrão que surrupiara o santo e este pega um estranho engasgo que o faz devolver a estatueta. O Vigário trouxe a peça sacra para Cratheús e, depois disso, ninguém mais a viu!
                Se o ouro sagrado logo sumia, imagine os difíceis contos de réis... O Padre cobrava 5$000 réis por um casamento sob a abóbada da Igreja. O casamento por fora, ao gosto do freguês, era o dobro. Até para um defunto se enterrar estava pela hora da morte: 15$000 réis. Com esses preços, reclamavam tanto os vivos quanto os mortos!  Mas a convivência só se tornou azedamente insociável pelas velhas rixas políticas. O bobo do sertanejo, como massa de manobra, era tangido, hora por um, hora por outro grupo, os Marretas do Padre Rosa e os Rabelistas do Dr. Luiz Chaves e Melo, que ficavam atiçando brasas e escrevendo denúncias nos jornais de Sobral e de Fortaleza.    
                No Unitário, jornal cearense de oposição a Accioly, em 4 de abril de 1911, ler-se: “Chamamos atenção do Revmo Sr. Dom Joaquim José Vieira, Bispo Diocesano do Ceará para as mui justas reclamações da população de Cratheús contra o procedimento do vigário, que foi posto ali. É um rapaz turbulento e que se está portando como qualquer Sargento de Polícia que comanda forças do interior.” O artigo continua: “ Vossa Excelência convirá que é um importante ato de caridade fazer sair dali uma criatura tão imprópria para o papel de cura das almas ou pastor de um rebanho de cristãos. O Padre está só servindo de  instrumento de um grupo prepotentes, como Deolino Lopes e Jerônimo de Sousa Lima, o Cel. Giló. Como foi que o filho de um pobre ferreiro de Tamboril, que chegou aqui puxando uma cachorrinha, se tornou uma pessoa riquíssima, juntamente com todos seus irmãos? A Igreja crateuense se transformou num celeiro de negócio rendoso, para algumas famílias!” E concluem, com um abaixo-assinado, a denúncia ao Bispo de Fortaleza, dizendo:  “ Ele se descuida até dos ensinamentos do evangelho.”
                O povo ficava espantado e de boca aberta, quando via o Pe. Rosa treinando tiro ao alvo nas árvores das Cajás, à beira do Rio Poti. Fora ao Mercado Público, com o mestre de música da Igreja, que era casado com sua sobrinha, para comprar um rifle e algumas caixas de balas. Agora se exercita em pontaria num arbóreo alvo, imaginando ser algum famigerado rabelista. E tinha que está preparado, pois era hábito do povo andar armado pelas ruas, até dentro do templo sagrado da igreja do Senhor do Bonfim. Em qualquer um se percebia o cabo do punhal “rabo de andorinha” sobressaindo da camisa ou o volume indicativo de um Smith & Wesson nos cós da calça.           
                O dia 18 de março de 1913, na festa de São José, o Padroeiro do Ceará, a esperança aflora na pele do sertanejo, em suplicantes orações buscando alento para as agruras da seca. Naquele dia, sob a cúpula da Matriz do Senhor do Bonfim lotada de fiéis, reinava uma atmosfera de animosidade. Os rabelistas e os aciolistadas, lado a lado, dividiam o espaço do templo sagrado.  O Padre, inoportunamente, começa a descompor, asperamente, alguns assistentes que não eram de sua predileção: - Esse povo mal educado que se ajoelha numa perna só são ignorantes, são uns brutos, uns canalhas!
                O Cap. João de Deus Coutinho sentiu-se ferido nos brios. Interrompe o sermão do sacerdote e contesta: - O Padre estar é se esquecendo que rezar é a missa!
                A confusão estava armada. Muitos, já de revólver na mão, procuram um alvo. Afora as peixeiras desembainhadas que brilhavam no ar. Partiram pra cima de João de Deus, que se retira do recinto. Dizem que ouve um disparo rumo ao altar, onde repousa a imagem de madeira do Senhor do Bonfim.  Hóstia e bala se juntam no mesmo local de adoração. O Padre Rosa havia tirado a batina e de costas para a multidão, afoitamente, vociferava: - Podem atirar! Querem atirar? Atirem!
                Décadas, após aquele famoso incidente no dia de São José, a Catedral do Senhor do Bonfim receberia outro estampido de bala, mas desta vez pelo lado de fora, no confronto com os revoltosos.
                 Após incidentes tão sérios numa cidadezinha interiorana, o Pe. Rosa teve que se retirar de sua velha paróquia, por ordens superiores. Como o Oligarca Accioly, que foi deposto e retirou-se às pressas, num navio de cabotagem. A oposição ainda continuou a perseguição ao Babaquara, mar adentro, até alcança o navio e matar Acciolito, o filho de accioly,  pois a cruel vingança, filha da selvageria, só se sacia no ardor do fogo ou na avidez do sangue! 
                Uma tropa, de muitos animais, estava em prontidão para levar os pertences do Padre Rosa, no quarteirão em frente a Igreja. Alguns aciolistas e as beatas vertiam lágrimas na despedida do padre.  Do outro lado da rua, em frente Igreja, um grupo de rabelistas se compraziam com a visão da partida do presbítero brigão. Dona Chica Pereira, uma senhora da sociedade, levara um auxiliar para ajudar a soltar uma dúzia de fogos.
                Joaquim Gonçalves Rosa também se especializara em jogar pragas, era exímio na arte e já dera provas disso, como Moises fizera no Egito dos Faraós.  Um dos rabelista ouviu o padre balbuciar uma oração olhando para o grupo opositor: “Me revisto de toda armadura de Deus... e que o fogo dos infernos suba de chão acima!”
                Dona Chica ordena ao ajudante que acenda o primeiro rojão, nem bem o padre pegara na rédea do cavalo. O negro, herdeiro da antiga sensibilidade e premonição dos escravos, sentindo um arrepio na espinha, rejeita a missão, avisa: - Cuidado com o castigo divino, Dona Chica! Ela zanga-se e chama o negro de covarde: - Me dê essa merda que eu mesmo acendo! Na raiva desenfreada, toca fogo diversas vezes no estopim, que não acende. O braço cansado baixa ao chão e o foguete dispara, resvalando na terra e refletindo nas pernas de Dona Chica queimando a anágua de lã, como as queimadas nas capoeiras do sertão. Essa foi a praga do fogo divino, que faltou no Egito dos faraós, pensou de longe,  o negro fujão!               
                O Padre segue na trilha do seu novo destino, sem olhar para trás. Confia na poderosa oração da época de Moises, pois nunca uma praga sua falhara!
                Um comerciante-poeta, José Saboia Livreiro, assaz espirituoso, que curiosamente assistia ao espetáculo por ali, aproveita a ocasião e aumenta uns versos de um poema rimado em pês: “O padeiro Paulo Pereira / pacato porco preguiçoso / palerma de pouca pataca / padece passando pomada / na perereca da Chica Pereira do PP.”
                Como disse o filosofo, só contemplamos a história pelos olhos dos outros, mas bem que eu gostaria de ter assistido a estes estupendos espetáculos entre os aciolista e os rabelistas com o meu difuso olhar, mesmo a me ofuscar, no velho Sertão de Cratheús.      


         Raimundo Cândido

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