terça-feira, 11 de novembro de 2014

Quirimba, o milagreiro.

                                              

Quando o irascível Rio Poti escaramuça pelo sertão, vira um potro indomável, transforma-se num touro de ímpeto buliçoso.  Não perdoa, logo retoma as margens ribeirinhas que são suas e sem precisar dos princípios jurídicos do direito. Na madrugada, quase sempre, vê-se a correria do povo fugindo da língua d’água que entra por baixo das portas, sem pedir licença, e se avolumava dentro das casas que ocuparam as terras baixas da cidade de Cratheús. As asas líquidas do Poti se espraiam, com satisfação. É uma grande tristeza e a mais certa das tragédias anunciadas!
 O volume aquoso vai engrossando à medida que recebe as diversas grotas, os numerosos riachos nas duas margens e vai serpenteando, rumo ao boqueirão da Serra Grande.  Espetáculo bonito de se ver! Um dos afluentes que mais injeta ímpeto, no já petulante Poti, é o Riacho Serrote, que vem acelerado pelas profusas águas do Riacho do Mato, desde o Curral Velho dos Bomfim. Ao chegar à foz, na Barra do Rio, forma-se o encontro do apocalipse com o caos. As águas barrentas invadem as várzeas opostas de um local chamado Quirino, cujos moradores mais antigos já perderam o significado deste nome na memória. Não sabem quem trouxe a designação para um lugar tão abençoado. Ouviram, de um padre, que um Imperador Romano mandou o Governador da Síria, chamado Quirino, fazer um recenseamento na época da infância de Jesus Cristo, daí tiraram o nome. Outro cidadão, metido a sabido, disse que o primeiro Quirino que chegou ao local, fugia de uma guerra dos lados de Pernambuco, numa história que está bem contada no romance “A Pedra do Reino” de um escritor engraçado chamado Ariano Suassuna.  Não faz diferença de como surgiu a nomeação, o que importa é que, ali, onde mora o Chico Guda com sua esposa, Dona Maria das Dores, e o seu filhinho Zé Guda, o gudinha, é o bendito Quirino.
— Ei, compadre Chico, a irrigação na várzea para a plantação de arroz, este ano, vai ser muito boa! Afirmava o amigo mais chegado de Guda. E ele, puxando a rédea da burra estradeira, mas arredia, respondia já com um sorriso de satisfação no rosto: — Meu compadre eu já estou preocupado é com o prejuízo que os pássaros vão me dar. Você viu como a várzea já está apinhada de papa-arrozes e de sibites de toda espécie? Mas preparei uma boa para eles. Vamos lá em casa, para você ver o boneco que fiz, compadre!
Chico Guda (Apelido do tempo de pirralho: —Vamos jogar bola de guda! Convidava os amiguinhos quando teve tempo de brincar de bila) era um fino artífice, caprichara no espantalho feito de tronco de imburana de cheiro, os olhos, o nariz e a boca estavam uma perfeição e até os braços se erguiam aos céus para melhor espantar os pássaros. Digna das obras dos santeiros que faziam imagens para as festas religiosas. O compadre aprovou tanto, mas tanto, que, pasmo, enalteceu aquilo que viu: — Mas Chico Guda... Tu devias trabalhar era nas festanças de Padim Padre Ciço de Juazeiro. Tu ias era morrer de ficar rico, homem!
Uma plantação de arroz dá trabalho. É uma planta delicada. Requer terreno bem preparado, com circulação de água e tem que ser tudo muito bem planejado.
Tinha gente que dizia: — O Chico Guda é um cabra muito afoito! Outro remendava: — Que nada, ele é teimoso, quem já viu plantar arroz num sertão brabo deste!
A várzea alagada, depois da inundação, ficou uma beleza com o arrozal crescendo, já mostrando as espiguetas amareladas para alegria dos papa-arrozes. O espantalho de imburana já estava lá no meio, tentando desempenhar sua missão de afugentar a passarada. Não dava conta. Os bandos de pássaros já se acostumaram com a boniteza da obra de Chico Guda.
A meninada passava o dia com a baladeira esticada, afugentando as aves teimosas. O bando levanta voo e logo volta para terminar de encher o papo. O Gudinha mirava o estilingue até no tronco do espantalho, onde as aves, sem medo, sentavam. Colhem algumas sacas de grãos que deu para a subsistência da família e apurar um dinheirinho na venda.
Os agricultores, no cansaço do solo e nas invernadas fracas, de ano pra ano, alternam as culturas, saindo do arroz para milho, do milho para o feijão e as coisas vão ficando mais fáceis de semear, colher e sobreviver. E o velho espantalho, esquecido, foi ao chão, arrastado pelas enxurradas dos anos vindouros, sumiu da Várzea do Quirino.
O Zé Guda, meninote já mais forte, cumprindo ordens do pai, tinha ido dar águas aos animais no Poço da Barra, quando a arisca burra, em que estava montado, volta e chega sozinha em disparada! Correm e encontram o Gudinha gemendo de dor, sobre uns pedregulhos da beira do rio. Não fraturara nenhum osso, mas o joelho logo incha como um balão. Nem sebo de bode capado, nem banha de tejo gordo ou da venenosa cascavel resolve. O menino caminha como um Sacy Pererê, pulando numa perna só!
Alguém sugere ao Chico fazer uma promessa: — Se os remédios da terra não resolvem, Seu Chico, o remédio do céu é tiro e queda! Faça uma promessa que o menino fica bom na hora! Até diz que existe um santo milagreiro num povoadozinho chamado Lapa, que fica antes de chegar no Castelo do Piauí. Uma imagem de Santo Antônio do rio que os pescadores acharam enganchada nas moitas.  Você sabe né, Seu Chico, ele é o santo dos amputados, dos pescadores, dos caçadores, dos agricultores, dos cavalos, dos jegues, dos burros, dos pobres e dos oprimidos. Faça a promessa e vá pagar na Lapa. Dito e feito. O menino ficou bom do joelho, que permitiu montar, pai e filho, numa parelha de animais e foram em busca de expiar o compromisso com o milagreiro achado nas moitas do rio.
Pelo caminho vão se inteirando dos poderes do santo e dos prodígios alcançados pelos peregrinos, que já voltam das promessas realizadas e pagas. Chegando na Lapa, um lugarejo de casinhas esparsas,  perguntam pelo Santo Antônio.  Informam-lhes que agora ele não está mais no paiol de milho de quando foi encontrado, construíram uma capelinha num elevado, com uma escadaria de tijolos para pagarem as promessas, os penitentes subindo cada um dos degraus e de joelhos.
Alguns rezam, a oração que sabem, em cada degrau que sobem. Outros, no silêncio de cada joelho que transpõe um batente, está a própria oração. Assim vão, pai e filho, ajoelhados, concentrados, agradecidos. Quando, de repente, o Zé Guda levanta-se, espantado, os olhos arregalados olhando a imagem do Santo Antônio do rio, como se visse uma assombração.  O pai o repreende: — Se ajoelha Zé! Respeita o santo que te curou! E o menino, ainda espantado, responde gritando: — Mas é o Quirimba, pai!!! É o espantalho da roça de arroz que o senhor plantou!!! Chico Guda olha, com mais atenção, e reconhece os olhos redondos, o nariz afilado, a boca larga e ainda tem os braços abertos, agora rogando milagres aos céus! Levanta-se também, muito assustado! 
A multidão de fiéis censura o comportamento dos dois. Chico ouve alguém dizer: — Mas que falta de respeito grande é essa? Chamar o nosso Santo Antônio da Beira do rio de espantalho! Quem pensa que são, esses dois, para chegar aqui deste jeito?
Chico Guda pressente que pode haver uma revolta e procura sair rápido do povoado antes que aquela gente se indigne de vez. E na volta vai cismando, ruminando com seus irrequietos botões: “Como foi possível um espantalho sair de suas humildes e calejadas mãos e se transformar no santo milagreiro daqueles? A prova estava ali, ao seu lado, havia curado o seu filho, o gudinha!” E até chegar à abençoada várzea do Quirino rezou... Rezou com todo o puro e reverenciado silêncio que sabia.


Raimundo Cândido

Um comentário:

  1. As lendas estão ai
    para alimentar as crendices populares
    que vão surgindo e se alastrando
    para se transformarem
    nessas verdades comprovadas.

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