No principio era a Poesia. E a
poesia estava na fonte, e da fonte nasceu o córrego, e o córrego fez-se um majestoso
rio. Era o Poti, ziguezagueante, sinuoso, serpenteando como cobra de vidro
pelos descampados sertões de Cratheús. Por princípio, os rios já existiam,
sacrossantos, no plano da Divina Poesia!
Um dia, a criança que rompia as
manhãs em turvas águas fluviais, subitamente anoiteceu, perplexa e tristonha, nas
exauridas ruínas de um rio maltratado, sem o precioso líquido a escorrer no seu
mortificado leito que vai, pouco a pouco, deixando de existir. O rio que brotou
de meu peito só quis desaguar e permanecer distante, ao largo mar. Mas ele
sempre retorna, nos sonhos, trazendo a infância que rebenta da ampulheta do
tempo. Os rios não morrem, hibernam. A gente é que não sabe dos fluviais
mistérios que há! O Rio Poti, que ainda flui em mim, tem uma parte perene e
outra intermitente, com suspensão quase contínua, interpondo-se no fluxo da
existência. Concede-nos a mínima estação, cheia de benesses (E quando há!), numa
incomensurável alegria e impõe as temporadas amargas e de longas paisagens
cinzentas (Quase sempre!), e é um pesar!
Havia fortes indícios suspendendo
o porvir fluvial e se estampava como uma tragédia no ar, como agouro ameaçando
o retorno do velho Itaim-açu, como é chamado o Poti na sua nascente. Os quatro
anos seguidos (2011 - 2014) de estiagens pesadas e a profecia de retorno do
maior desastre que se tem notícias na história do sertão crateuense, a seca do
15, cem anos depois, ameaçava o regresso do estimado rio, num prenúncio
tenebroso. Como se a natureza entendesse as datas prefixadas pelo homem, e obedecesse
minunciosamente.
Tive medo, fiquei com receio
de não mais ver o Rio dos Camarões escaramuçar na sua velha calha e então,
resolvi conhecê-lo, por inteiro, desde a sua falada nascente, na Serra da
Joaninha, até a foz, no belíssimo Encontro das Águas, no Piauí, onde reina o famigerado
Cabeça de Cuia.
Munido das informações
necessárias, quase na madrugada ainda, apanhei a Topic que faz horário para a
cidade Quiterianópolis, onde fica a nascente do Poti. Passamos por Novo
Oriente, seguindo pela BR 404 e, cedo da manhã, chegamos às terras que
pertenceram a Senhora Quitéria de Lima, a antiga Vila Coutinho, a 78 km de
Cratheús. O topiqueiro me avisa: - Esteja aqui, na parada, antes de 1 hora da
tarde, senão você vai pernoitar. E apresenta-me a um Moto-taxi, dizendo: — O João
Caburé lhe levará aonde pretende ir!
Firmo contrato com o tal João,
mas não tive coragem de falar seu apelido (Encobri um leve sorriso, pois o
coitado até parecia um agouro!), mas era um guia tagarelo, que logo me comunica:
— Até a Fazenda Jatobá são 40 km de distância e cobro R$ 1,00 por cada
quilômetro rodado, mas antes saiba que a
rodagem é toda de terra batida. E na estrada, de novo! A garupa da moto pulava mais que burra
coiceira pela carroçal da CE 277, e eu já imaginava como seria inconveniente o
regresso. Além dos solavancos, dos catabis no chão esburacado, ainda tinha a
procissão de carros-pipas, que iam e vinham sem parar, com o mundo
desaparecendo no poeirão que subia no ar, mais pareciam tropas de jegues na
seca de 32, a denunciar mais uma grande crise hídrica.
De vez em quando passávamos
por um pontilhão. Perguntei: — Ó João, esses riachos que estamos passando, caem
todos no Poti? Responde-me, gritando, para superar o barulho do motor: — Que
nada, amigo! Isto que você está vendo é o próprio Poti!
E lembrei-me de um ditado antigo:
“Rio torto a gente passa é mil vezes”. Uma paisagem desolada, vegetação
desmatada, um imenso eito de abandono e solidão, até a Mata Ciliar é uma
raridade no leito do Poti, no município de Quiterianópolis.
Ao longe, uma nuvem de poeira
negra sobe em coluna, e o guia, notando meu interesse, esclarece-me: — É a Mineradora
Globest, que retira, todo mês, 80 mil toneladas de pó de ferro e manda para a
China! Perguntei: - Esse pó não polui o
Poti? Ele proferiu um longo “Huuum!” de descaso ou descredito, não sei, mas
concluiu: - A Secretária do Meio Ambiente vive brigando na justiça. Até as
crianças, que moram aí, estão com uma alergia encruada. Dá em nada!
Não sei por que, mas lembrei-me
do Livro de Exame de Admissão, onde estudei pela primeira vez a lição
intitulada: “O Brasil Colônia”. Até que achava bom quando topávamos com uma
cancela, só assim esticava as pernas. Na frente de cada residência se estampava
uma cisterna, de cimento ou de um plástico azulado, como parte do Programa Água
Para Todos. A surpresa foi quando apareceu o talhado da Serra da Joaninha, uma
asa pétrea em ramificação na Grande Serra Azul, o grandioso maciço da Ibiapaba.
— Já estamos na Fazenda Jatobá! Anunciou o moto-taxista.
Uma casinha branca, assentada quase
na fralda da serra, o reboco caindo, a calçada corroída pelo tempo, um curral
de carcomidos paus-a-pique, eram sinais de que havia vida naquele sopé de
solidão. O morador, um típico vaqueiro chamado Mazim, veio nos receber e, a
priori, já sabia o que tínhamos ido fazer. Mandou-nos aguardar, enquanto pegava
um enorme facão do mato, de umas 20 polegadas, e uma lanterna que daria para
clarear o mundo. Seguimos por uma trilha estreita e íngreme, margeada de angicos,
de aroeiras, de pau d’arcos, todos de caules finos ainda, dando sinal de
replantio. Alegro-me, pois ouço, ao longe, o belíssimo flauteado de um sabiá. Sempre
achei o Poti parecido com um pássaro, a cantar e a voar! Saindo de uma boca
pétrea, na base calcária da Serra da Joaninha, ouvi um som de uma torneira
pingando: Ping! Ping! Ping! Era o Olho d’Água do Fundão e descemos uns três
metros de rocha, numa loca, para chegar a primeira nascente do Poti, já dentro
da famosa Gruta Pinga era só escuridão e entendi o porquê da lanterna. A água
brotava do teto, pingava numa poça, caindo de uma enorme pedra côncava, no
teto, dentro de uma convexa, no chão, e a escorrer para dentro da montanha. E
em cada pingo que caia eu via as lágrimas do sertão! Mazim bebe na concha da
mão, o que me faz repetir o gesto. Ele me dirige um olhar fixo e diz: — Ó, Seu
Raimundo, neste local aí, só vi três coisas matar a sede, até hoje. — O que foi que o Senhor viu bebendo aqui,
onde eu estou, Seu Mazim? Pergunto, assustado.
— Os guaxinins, as pardas e,
agora, você!
— E o que é essa parda, Seu Mazim?
Pergunto de novo.
— É uma oncinha vermelha, a maçaroca, chamam também de suçuarana, mas elas só aparecem por aqui, quando anoitece, Seu Raimundo!
Antes de sair da gruta, pressenti,
como que a presença de Patâmide, a ninfa dos rios, mas só vi uma enorme gia,
quieta num canto, com seus olhos arregalados no meu rumo.
Fomos ver o outro manancial
que fica do lado de fora, ao pé da gigantesca gameleira que abraça as rochas
com suas grosas raízes, como que a espremê-las, para a fonte poder brotar. Era
a nascente do Poti, que hoje é escoada por canos de plásticos, direcionada para
um comprido tanque de concreto, o bebedouro das vacas da Fazenda Jatobá, que
pisoteiam o solo sagrado do início de um rio.
Recordei da lei que obriga a, pelo
menos, uns 50 metros de raio de proteção em cada insurgência de água natural,
cercada de mata nativa, mas logo me lembrei de que estava no Brasil, e no fim
do mundo, na encosta da Serra da Joaninha, que um dia foi mar, o mar que esculpiu,
poeticamente, a Gruta Pinga, com a punção das águas revoltas e o cinzel dos
ventos furiosos, e então agradeci, então roguei: “Bendito Sejais, Ó Grandíssimo
Deus! Pelo rio, obra Tua! Pela água, criatura Tua! Peço-te, Ó Onipotente, fazei
com que toda ameaça de mais sofrimento se dissipe, protegei a nascente do Poti,
fazei com o velho Itaim ganhe novamente vida e corra, como um barco ébrio, voe
como um pássaro a recitar versos aquosos pelo sertão sofrido e que encha o
Colinas, e que encha, com o líquido da vida, o Flor do Campo e estenda suas
benesses ao nosso sofrido Carnaubal. “
Despeço-me da Fazenda Jatobá,
mas levo no peito a certeza de que o Rio Poti é eterno, pois vi o seu sangue
minando das solidas rochas, e pressenti nos olhos da ninfa Potâmide que, um dia,
ele há de voltar.
Raimundo Cândido
Cultura para deitar e rolar
ResponderExcluirnesta narrativa que prende a atenção
do mais desprevenido leitor
com o brilho perene
de sua rica universalidade.