Ali, da nave da Igrejinha de
São Francisco, ao lado do Mercado do Peixe, em pleno burburinho da Feira Livre,
o venerável Padre Alfredinho enquanto rezava pela alma de Antonieta, a
prostituta tuberculosa, via, nas duras missões e nas pesadas cruzes das pessoas
que iam e vinham com suas incumbências transitórias, o velho mundo insano
mesclando o sal do sagrado com o doce do profano, em plena luz do dia, para o
clímax das noites.
A
noite dos cabarés que nunca findou, com os seus “paraísos” e as suas
“fogueiras” eternas numa cama de um quarto qualquer. Eles nunca deixarão de
existir, estão somente se adaptando aos novos dias. Os costumes e os comportamentos
arrefeceram os bordeis que vão perdendo espaço, estão, lentamente, se turvando
no bojo do tempo. Os estudiosos do comportamento sexual dizem que a sociedade
incorporou, no seu seio aconchegante, o modo permissivo de uma vida liberada,
até com forma de controle dos filhos. Uma jovem dormir com o namorado, na casa
dos pais é, hoje, a coisa mais natural do mundo e com uma rotatividade digna
das grandes raparigas dos velhos cabarés de antigamente. Com uma concorrência desta
não há zona que aguente!
Não sei se o Pe. Alfredinho,
com sua humildade santa, ao socorrer a puta Antonieta, salvou-a, mas algumas
sementinhas dos históricos bordeis crateuenses estão a salvo. Da Rua Cel. Totó,
na dinâmica Feira do Peixe, subindo pela Rua Francisco Mariano, a famosa Rua FM,
até a Rua Tabelião Francisco Antero, é só um pequeno quarteirão que está
repleto de lupanares com suas mercadorias ofertadas à luz do dia, enquanto as
patacas das cirandas financeiras circulam pela cidade.
São casinhas simples,
coloridas, discretas, com as meninas sentadas nas cadeiras da calçada. A sala
da frente é um convidativo bar, uma mesinha e o propício som estimulando o solitário
cidadão que está a precisar de um obsequioso e carinhoso serviço contratual.
O endereço é, também, adaptado
aos novos tempos, nenhum é bordel, aparentemente: É a casa da Noemia com suas
meninas, a casa da Helena, da Fransquinha, da Paulona, da Dona Lurdes, da
Dilva, o Bar do Aldemir e outros recintos que se assemelham a aconchegantes
lares.
A agitação é até a última hora
em que os transportes do interior ainda estão circulando pela cidade, em plena
luz do dia. A própria mãe de todas as prostitutas, a Semíramis, uma deusa que
queria ser a própria lua, fundadora da cidade de Babilônia, estranharia esse
hábito incomum, um circo dos amores à luz do dia! Até as meretrizes deixaram de
ser esvoaçadas mariposas.
Percebem-se moças que circulam
pelas calçadas, atravessam a estreita rua, como se em vitrines dos bordeis da
Cidade do Amor, a Ilha de Florianópolis. Se não se conhece, passa-se por uma
rua qualquer da cidade, com seu ardor e seu labor.
Mal o tímido cidadão senta-se
na cadeira, uma andorinha se achega, e não perde tempo, pois, no brilho do sol,
cada instante refulge como a dinheiro vivo e, nas buchas, o convida: - Vamos
namorar? É assim, direto, e sem perda de um segundo a mais, dirigem-se a um
quarto ali aos fundos do lupanar crateuense, em pleno liberal e socialista
século XXI.
Ao abrir da porta do quarto um
cheiro característico chega ao olfato, o odor dos supérfluos amores que fica no
ar, num incitamento da deusa dos pecados e ainda mais o rigor do apetite sexual
se aguça. Um quartinho com um pequeno banheiro no canto, uma surrada cama de
casal com uma rota colcha a convidar à volúpia, à lubricidade, à lascívia. Ao
instante fugaz e momentâneo, sim, ao amor e à paixão, não!
De uma caixa de som,
dependurada na parede, a música Boate Azul, na voz de Bruno e Marrone vibra no
ar: “Doente de amor procurei remédio na vida noturna / Como a flor da noite em
uma boate aqui na zona sul / A dor do amor é com outro amor que a gente cura /
Vim curar a dor deste mal de amor na boate azul.” No exato instante em que a andorinha se
prepara para o momento primordial da humanidade é o instante em que damos corda
na vida. Ali, vendo aberta a máquina do mundo, ofertada, com todos os mistérios
despetalados como uma melodia ovidiana, como uma poesia remota, sente-se que o
coração é um bordel gótico onde se prostituem as ninfetas decidas. Dama da
noite, cuja profissão é alugar a flor enraizada da vida, em consequência de uma
vil miséria, de um cruel abandono, e ainda levar no corpo a culpa de todos os
pecados, ó injustiça!
Mas todas as mulheres, santas
ou putas, sem exceção, são perfumes, são pétalas, são espinhos... Ofertadas
numa taça repleta de mel e de fel, com o gosto do sagrado, com o sabor do
profano onde perdemos o natural equilíbrio, pelo sublime inebriamento das
paixões e por uma overdose de prazer e de vida.
E nem o santo Pe. Alfredinho,
nem o rígido Coronel Francisco Mariano sonhariam, um dia, com a sobrevivência da
rua dos amores no centro da cidade, a rua dos desejos profanos, do amor carnal,
mas como uma firme coluna que a tudo sustenta, desde que o mundo é mundo.
E pelas esquinas da Rua
Francisco Mariano, enquanto inocentes crianças brincam de bilas pelas esquinas
e no malfeito calçamento transitam motos, bicicletas, caros num vai-e-vem
constante, a FM cumpre sua sobrenatural missão na existência dos bordeis, com a
força das brumas do passado trazendo a exuberância dos velhos lupanares para o
presente na histórica cidade de Cratheús que de há muito tempo, além de recinto
de prostitutas, é uma cândida urbe prostituída.
Raimundo Cândido
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