Época houve em que tive medo
da vida. Um estranho acanhamento isolou-me do mundo e, de repente, vi-me
mergulhado numa furna sem luz, abatido num triste ambiente de solidão. Somente
os livros avivavam-me o espírito, diminuíam a melancolia, pois a boa leitura
sempre trilha ao revés da solidão. Foi quando caiu em minhas mãos uma obra
literária da escritora cega e surda Helen Kellen, onde ela dizia: “A vida é uma
aventura ousada, ou, então, não é nada!” Neste exato momento resolvi derrubar as
paredes que tolhiam a minha alma e me predispus, como audaz aventureiro, mas
ainda insociável solitário, a trilhar, ao léu, os caminhos desolados do sertão.
Desde então, a passos firmes, ando pela
Ribeira do Poti, em busca de mim, em busca de vida!
Percorri longos trechos nas
margens do rio e até dos descampados da inóspita Caatinga, sem importar se tudo
estava em cinza dos entorpecimentos ou do verdejante renascimento, mas era o
que eu procurava e, o mais importante, foi descobrir que sou sertão, que nasci
sertão e que viverei sertão! Percebi que corre, nas calhas de minhas veias, a
seiva vivífica das catingueiras, dos angicos e dos marmeleiros! E que detenho,
impregnado no faro, um aroma consistente de mufumbo a perfumar a vasta e
desamparada Caatinga que se estampa ao meu olhar.
Quando em visita a uma
comunidade indígena, na vertente da Serra da Ibiapaba, soube da existência de
uma furna selvática chamada Quarenta e Sete, localizada entre as tribos de
Nazário e Mambira, e o desejo de aventura, mais uma vez, disparou no meu cerne.
A sorte é que não sou o único louco aventureiro deste sertão abençoado de meu
Deus. Coincidentemente, ou não, o amigo Edilberto Araújo, esposo da benevolente
vereadora Eva Vieira Barbosa, liga-me convidando para conhecer a dita caverna,
há muito inexplorada. Rapidamente, como experientes espeleólogos, detalhamos
toda excursão para explorar aquele sitio no subterrâneo da serra.
Os raios do sol ainda não acordara
o dia quando partíamos na Toyota Hilux do Vereador Toré. E já na rampa da
serra, com o carro tracionado nas quatro rodas, numa subida íngreme de pedras soltas
da estrada cortada pelas enxurradas recentes, vencendo árvores caídas no gume
do machado, e só a esplendorosa visão, que se tinha do amplo vale da Ribeira do
Poti, compensou o sufoco do dificílimo trajeto. Paramos a meio caminho entre as
duas aldeias, por ordem do nosso guia, o experiente índio Severino. Agora tínhamos
que seguir a pé, numa picada que ia sendo aberta na mata, a golpe de facão,
decepando os galhos de marmeleiros brancos e juremas de bode. Aqui e acola
alguém apontava uma marca no chão e interpretava: - Esta pegada aqui, com
certeza, não é da pata de um cachorro! Mesmo com os avisos de cuidado, as nossas
mãos ficaram urticadas pelos espinhos de cansanção.
Após uma boa caminhada
chegamos à rampa do declive da serra e encontramos um grande buraco no chão
pétreo, de onde saía os galhos da copa de uma árvore, como uma ofertada escada
para descermos para dentro da furna. O medo de cair gelou meus nervos, mas
escorregamos, lentamente, uns três metros de altura, pelos galhos e tronco da
árvore, como macacos equilibristas. E, já no chão da caverna, um fascínio tomou
conta de meus olhos, pois o brilho refletido nas paredes da furna se espalhava
no ar. Está ali, pisando no chão da famosa Furna Quarenta e Sete, 47 braças, mais
de 100 metros de abertura na rocha, entrando no subterrâneo da serra da
Ibiapaba, era inacreditável! Enquanto a luz descia pelas fendas superiores,
víamos toda beleza e resplendor de uma furna virgem e, de repente, a caverna
foi se fechando, foi se afunilando numa loca estreita, escura e tão baixa que não
cabíamos de pé.
O Claudemir Moraes escaneou o
chão negro da caverna com a luz de sua lanterna e viu que não havia rastros dos
animais perigosos que ele temia. Então fez sinal para que o seguíssemos. Fui o
único intrépido que o acompanhou naquela afoiteza, confiado na socadeira
engatilhada que ele levava na outra mão. Até lembrei-me da furna da minha
solidão! Mal as pupilas se dilataram no breu que engolia o facho de luz
artificial, nos assustamos com milhares de morcegos horripilantes voando em
disparadas em nossa direção e que passavam como balas na escuridão, rente as nossas
orelhas. Foi o tempo mais longo que fiquei sem respirar. Acho que meu rosto era
a cara do pavor, naquele crucial instante!
Os poucos minutos que passei mergulhado
na escuridão da 47 ficaram, agressivamente, gravados na mente, e sempre que me lembro
daqueles vultos me vem o desespero que só vi emergir do famoso quadro O Grito,
do pintor norueguês Edvard Munch.
Despedimo-nos da Furna
Quarente e Sete, assentada no mais inacessível recanto da Caatinga crateuense,
isolada do mundo, com sua vida selvagem, misteriosamente bela, diuturnamente
burilando por lá.
Na descida, ainda com espanto
nos olhos, olhávamos para o provinciano povoado de Ibiapaba, estendido lá
embaixo, tendo ao fundo um grande morro como uma enorme corcova de camelo. Para
todo aventureiro, uma paisagem estimulante, assim, é motivo de sonhos, é motor de
irrequieta excitação. Parecia até que o Morro do Picôte nos desafiava a
enfrentá-lo! A ideia foi criando asas de tal forma que a escalada dos 650
metros de altitude estava com os dias contados. A última excursão tinha
acontecido em 1963 para os dados altimétricos do IBGE. Histórias eram só o que
se ouviam, de boca em boca, sobre o íngreme oiteiro da Ibiapaba: O povo, que
ainda se lembra dos gananciosos americanos que exploram o Picôte, em tempos
remotos, na procura de riquezas, conta dos descuidados caçadores de mocós que caíram
dos princípios íngremes ou fala do espetáculo dos macacos-prego descendo a
rampa, só para invadir as roças de milhos plantadas na base do morro.
Dos mistérios do subitâneo da Serra
partimos para os pícaros dos céus da Ibiapaba. Edvaldo Costa, Secretário de
Turismo, incumbido de promover o ecoturismo local, propôs que, antes da
escalada, se abrissem uma trilha para o topo. Ideia, de imediato, aceita por
todos os aventureiros. Um pick-up nos deixa na base do morro e começamos a caminhada,
em decidida fila indiana. Água e alimento suficiente, nas mochilas, iam dependurados
nas costas. A mata se fechava à medida que subíamos, e as copas dos angicos, das
aroeiras, dos jucás, dos paus-brancos aparentavam atentos olhares a nos
vigiarem. De vez em quando víamos um enorme mororó, todo ressequido, já sem
vida, com a casca roída pelos mocós, como forma de escapar dos anos difíceis de
seca. Mel de abelha é uma das farturas do Picôte, enxames que há anos produzem em
abundância no mesmo local e víamos as abelhas nativas, sem ferrão, que entravam
e saíam dos ocos de paus e até das locas de pedras. Um ninho de Nambu assentado
no chão, com três ovos rosados, parecia desprotegido, num ambiente infestado de
esfomeadas cascavéis. Com uns 300 metros de altitude, o fôlego já curto, as
mãos é que iam ajudando as pernas a subirem, e se grudavam nos embuás, uns
bichinhos compridos com mais de 100 pernas avermelhadas. Um vento frio no rosto
indicou que o cume estava bem perto e mais uns passos chegaríamos ao topo. Ainda
tivemos que subir um enorme bloco de pedra e a visão foi surpreendente. Todo o
vale do Poti de descortinou na nossa frente, com o rio correndo, serpenteando
feito cobra, passando ao lado da Ibiapaba e absorvendo o grande Riacho Oiti e seguem
juntos, rumo ao Estado do Piauí.
A sensação de vencer uma
montanha é indescritível. Ali, no topete do Picôte, sentido o vento da
liberdade acariciando meu rosto, lembrei-me, mais uma vez, daquela escritora
surda e cega a me dizer: “A vida é uma aventura ousada, ou, então, não é nada, amigo
Raimundo!” E deixei no pico do morro da Ibiapaba o que ainda havia de medo na
minha alma!
Hoje, graças as aventuras pela Ribeira do
Poti, das brandas margens do rio, tal qual um socó-boi, aos carrascais da
inóspita Caatinga como os instintivos répteis, ou das furnas misteriosas,
repletas de morcegos, aos morros íngremes replenos de incitante coragem,
respiro um vento libertador chamado SERTÃO. O Sertão de Cratheús, onde me
embriago ao aroma do mufumbo e, vou ao encontro de mim, ao reencontro da vida!
Raimundo Cândido.
E a Ribeira do Poti deu-se a conhecer ao mundo em cada um dos seus cantos, graças às crônicas do Poeta Raimundo Cândido com suas caminhadas e seus encantos. Parabéns e obrigado por nos dar a conhecer essas maravilhas.
ResponderExcluirDo intimismo da solidão
ResponderExcluirpara a aventura ousada das trilhas,
lá vai Raimundo peregrino
a desbravar agreste Natureza
que só existe em Crateús.
Quanto mais leio os escritos do Raimundo Cândido, mais encantada fico e agradeço ter conhecido esse homem simples que, silenciosamente transmite a paz, encanta e enriquese o leitor, com seus diversificados temas.
ResponderExcluirUm forte e fraternal abraço. Socorro Cavalcanti