É uma aventura bastante difícil,
um poema quase que irrealizável, alguém percorrer a calha de um extenso rio, da
fonte à foz, como me propus, sem o fôlego de peixe a nadar, e ainda, por desventura,
pelo leito de um rio quase morto. Em compensação, pelas inúmeras tentativas de efetivar
meu intento, tive o ensejo de conhecer belas paisagens e curiosas histórias dos
ermos perdidos da Ribeira do Poti, e mesmo não trilhando toda a plenitude do
Rio das Piranhas, declarei por concluída minha empreitada. Tive a oportunidade
de conhecer alguns riachos, impetuosos como os rios, de admirar várias grotas, sulcos
largos, profundos, rasgados na terra como artérias por onde circula o líquido
vital. O Poti é, intermitentemente, avigorado por importantes riachos, como: Três
irmãos, Capitão Pequeno, Itaim, Adão, Tourão, Cavalos, Serrote, até o Riacho Oiti,
que desce da Serra do Picôte e adjacências, mas nenhum deles com a beleza de um
córrego pequeno, mas caudal, conhecido com o nome de Grota do Pilar.
O Córrego do Pilar nasce no
sertão, de permeio, e nas boas quadras invernosas se anima como um cabrito
selvagem, transpõe passagens molhadas, desliza em incessantes ziguezagues ,
intrometendo-se num pontilhão de ferro até chegar às croas do Quirino, e só aí,
então, se enfeitiça, em fascínio, em mistério e em sedução.
Na estrada carroçável que desce ao
encontro do paredão da Serra Grande sempre margeando o Rio Poti, que desfila pela
Boa Vista dos Correias, desce pelo Junco, passa pelas Aroeiras, pelo Morro
Alegre e já no limite do Capão da Areia com o povoado de Quirino, encontra-se uma
depressão brusca, indicando que um córrego por ali, de vez em quando, está a
passar. Duas enormes oiticicas esticam os cabos de arames que empanam uma disforme
e pendente cerca sobre a Grota do Pilar. E se um desvairado caminhante olha, da
estrada para a trilha de areia que se estende dentro do cercado entre dois
barrancos argilosos e carcomidos pelo esmeril das águas que descem para o Poti,
sentirá um estranho chamado para trilhar o leito arenoso da grota. Aceitei o honroso
convite, pulei a cerca e comecei a caminhar!
Existe magnetismo nestes
lugares encantados em que até mesmo um cego dos olhos pode ver, se a alma congraçar-se
com a vibração do lugar. A Grota do Pilar tem mistérios, tem enraizados
segredos que, para bem poucos, ira se revelar. Uma luz coagulada no cerne das
árvores, na quietude das pedras, no imperceptível olhar provindo dos buracos escuros
nos barrancos, nos elementos visíveis e invisíveis, de tudo emana uma prece,
como saudação de boas vindas para aqueles que enxergam, para os que sentem uma
força quântica a nos abraçar.
A primeira observação quando
se pisa num lugar sagrado e original assim, é o súbito silêncio. Um sossego
induzido, uma dissimulada calma, mas que é uma velada música para encobrir os
segredos que, por ali, existem. E este é o momento de se conectar na essência do
mistério, o instante de se fazer intimo de casa.
Dezenas de centenárias oiticicas
de troncos colossais, dos dois lados da grota, uma olhando para a outra, com
suas volumosas raízes expostas no chão do regato, abraçando os barrancos para a
enxurrada não levarem e, a gente tem impressão que, essas mesmas raízes nos
enlaçarão pelas pernas. Aroeiras, sabiás, catingueiras e um batalhão de pés de
carnaúbas completam a espessa mata ciliar. Eu caminhava no leito seco
imaginando as águas descendo das enxurradas e os peixes nadando na subida, as
traíras, os corós, os mandis, as piranhas movendo-se contra a correnteza para
fazer a desova debaixo das sombras das oiticicas. Presumi, passar por mim, na
trilha dos peixes, uns dentuços jacarés, que até roçaram o couro escamoso nas
minhas pernas.
Parei e fiquei a admirar alguns
sibites, umas cambacicas amarelinhas de cabeça listada, nos galhos dos mameleiros,
num piando triste e a procura de insetos. Um bem-te-vi alardeou. A fogo-pagou
também cantou, mas nas moitas de jurema-preta, lá para dentro da mata-branca. Um
cancão resmungou com suas gaiatices e até o corrupião deu o ar da graça, no
topo de uma cajazeira. Fiquei espiritualmente contente quando notei que o
ambiente me aceitara. Mas a alegria durou pouco, pois ouvi um canto lúgubre e
puxado, pronunciando seu próprio nome, era a agourenta peitica que chorava.
Dizem, os caçadores de outrora, que ela é o próprio Saci Pereré, escondido nas
árvores, atrás de uma tora de fumo e eu nada trouxe para lhe agradar. Gilberto
Freire, em Casa-grande e Senzala, dizia que, se você ouvir uma peitica a chorar,
tome muito cuidado, saiba que é um aviso cruel e fatal, a melhor coisa a fazer
é dar maia-volta e regressar para sua maloca.
De repente, ouvi, ao longe, um
assobio insistente a me chamar: - Pssssiiiuu! - Pssssiiiuu! - Pssssiiiuu!
Fiquei tão curioso que até esqueci a ameaça da maléfica peitica. Sai,
procurando pelo centro da Grota, quem estava a me chamar. E quando mais andava
mais belezas eu enxergava pelo mágico ambiente do lugar: um Cavalo-do-cão, com
sua picada dolorida, passou voando atrás das aranhas-caranguejeiras, enormes formigas-pretas
desfilavam mostrando suas mandíbulas poderosas. Um vento macio acariciou meu
rosto e foi quando vi, no barranco ao lado, umas pedras brancas, como que
espedaçadas à marreta e lembrei-me das histórias que o Senhor Zé Cruz, o
Gilberto Freire do Quirino, havia me contado. Ele disse-me: - Raimundo, houve
época em que da grota do pilar saiam tropas de animais carregados de oiticica,
era uma multidão grande catando o frutinho verde debaixo dos pés que, já naquela
época, tinham 15 metros de altura e as mulheres aproveitavam para esmigalhar a
pedra Pilar, com marretas, para fazer o alvaiade que deixavam os chapéus de
palhas, que elas mesmas teciam, tão branquinhos com o algodão que também ia, todo
sábado, ser vendido nas feiras de Cratheús.
Ao chegar à
desembocadura da grota, onde o Poti bebe o Pilar, lembrei-me do poeta português
Saramago: “... Eis que dói, talvez no coração / uma ferida rasgada de navalha /
por onde vai a vida, / tão mal gasta.” Reverenciei meu velho e querido rio e
voltei, já no caminho de casa.
Sorte que eu
não ouvia mais o canto da peitica feiticeira, pois correria o risco de me
perder, arreado, como muitos ficam, desnorteados na mata, sem saber que rumo
tomar.
Percebi o vulto de um pássaro
grande, pulando entre as folhas espessas de uma velha oiticica. Apurei a visão,
procurando. Repentinamente, vi: Um par de redondos olhos negros, penetrantes, cravados
na minha direção! Até parei a respiração, eu não acreditava no que via. Era quem
me chamava, com aquele psiu afinado. Um belo Surucuá, o bonito dorminhoco, o
peito-de-moça como é chamado por aí, que insistentemente, assoviando, me invocava.
Um dos mais belos pássaros que existe no mundo, a cabeça e as costas negras, o
peito todo avermelhado e a cauda estriada com umas listas brancas transpassando
o negrume das penas. E acho que perdi o siso com tanta admiração, pois estava com
o surucuá a falar: - Bom dia dorminhoco,
que fazes aqui, na Grota do Pilar, seu ambiente é lá em cima da serra! Tinha
desvairado, totalmente mesmo, pois ouvi o surucuá me responder: - Raimundo, o
Ribeira do Poti, né! Meu amigo, as coisas mudaram, a natureza está mais quieta
e protegida, você não notou? Descemos para povoar o sertão, e a telúrica e mística
Grota do Pilar é o nosso novo lar.
E o pássaro voou, num voo lerdo
e preguiçoso, na certa foi procurar seus saborosos petiscos: as lagartas, as aranhas
e os besouros.
Voltei para casa, satisfeito,
por confirmar que a natureza está a se recuperar e, mais alegre ainda, por ter
visto um dorminhoco e ter tido a leve impressão que, ele, o belo surucuá, comigo
chegou a falar. Um contentamento tão intenso que fiquei sem acreditar e
regressei, inconscientemente cantarolando num lindo refrão: - Eu vi um Surucuá assobiar, na Grota do Pilar! Oba! - Eu vi um Surucuá assobiar, na Grota do Pilar! Oba! - Eu vi...
Raimundo Cândido
Natureza a se regenerar,
ResponderExcluiralegria deste viandante
que admira a beleza
do seu universo ambiental
e traduz o que observa
com humano sentimento.