Desde o princípio das eras, quando Deus,
imperativamente, ajustou o Fiat Lux que um fulgor se confirma no coração do
mundo: - Sim, sempre haverá um crepúsculo ao término dos dias, para que o Homo Faber
possa dispor cadeiras nas calçadas das casas, palco de poesias, sentar-se expondo
aos vizinhos o que o atrai, e o que o opõe, nas pessoas e nas coisas, jogando
conversa fora, no fulgente desvanecer das tardes.
O habito é antigo, mas desaparece
na poeira do tempo com a chegada da isenta modernidade. Naquela época, por toda
extensão da Rua Pe. Juvêncio, as calçadas ficavam apinhadas de cadeiras com as
pessoas narrando particularidades, principalmente as dos outros, com curiosos
ouvidos atentos aos picantes boatos alheios. Na casa de número 159, sentam-se o
Advogado Nonato Bonfim e sua digníssima esposa, a Dona Noêmia, e, não demora,
eles já estão cercados de vizinhos e amigos, que vêm de longe, só para ouvir
conversa fiada.
O Dr. Nonato Bonfim, um
eficiente rábula nos trâmites das leis, viu o Senhor Leôncio, o vizinho do
quarteirão da frente, que nunca parava de raspar um cipozinho de marmeleiro com
um canivete amolado, se dirigindo para a Rua Frei Vidal da Penha. Aproveita a
oportunidade e pede licença à plateia: - Se vocês me dão permissão, meus
amigos, vou acompanhar o Seu Leôncio, ele pode levar uma topada e cair. Todo
cuidado na velhice é pouco, não acham? Na realidade a sua intensão era
dirigir-se até uma das bodegas da Rua Frei Vidal e tomar uma cerveja gelada,
mas no fundo sabia que nenhum de seus artifícios enganava mais a esperta Noêmia
de Sena Bonfim, e até já registrara num de seus diários que, embora ela sendo o
seu anjo da guarda, era também muito durona sempre que precisava ser
autoritária.
Quantas vezes teve que entrar
com livros escondidos no cós da calça, um na frente e outros atrás e, ao passar
pela esposa, ouvia um duro sermão: - Comprou mais livros, Nonato! A sua biblioteca
já está abarrotada, as estantes estão cedendo com o peso de tanto livro.
Diga-me, quando vai parar com isso?
Era a maior, e a melhor, biblioteca da cidade,
tinha consciência disso. Já catalogara quase dez mil volumes e o zelo que tinha
para com seus alfarrábios era maior do que o ciúme que tinha para com a Noêmia.
Vastíssima coleção de dicionários, todas as enciclopédias que existiam,
coleções de historias do Brasil e do mundo, livros de romances e poesias dos
principais escritores nacionais e alfarrábios valiosíssimos pela antiguidade,
todos classificados em cadernos de capa dura com número, título, edição, ano,
autor e editora, trabalho de um bom bibliografo.
Mas, cuidado mesmo ele tinha era
com os diários, quatro dezenas de cadernos com anotações cotidianas, que
ficavam muito bem trancados, a sete chaves, e nem mesmo a esposa sonhava em ler. Sigilos maliciosos, perigosos, reveladores e quem guarda segredos assim, cria mistérios, desperta interesses, e teme por isso, mas no momento, as anotações secretas, não podem ser divulgadas. Um dia, quem sabe, se
ele mesmo não compilasse tudo num livro, alguém, da família, haveria de fazê-lo.
Sabia que os registros dos acontecimentos importantes ao longo dos anos, desde a
década de 60, as impressões amáveis ou hostis sobre as pessoas, a constante escassez
de chuva: “É triste, mas seja feita a vontade de Deus. É mais uma das grandes secas
de 25 cabrestilhos!”, as enchentes do Poti: “O rio amanheceu nas várzeas, suas
águas estão batendo na porta de meu primo e comadre José Nelson”, dos gemidos das
comadres nas alcovas aos rangeres de dentes dos compadres pelos corredores, os
tramas dos vereadores e os ajustes por baixo dos panos com os digníssimos prefeitos,
dariam um histórico e bombástico livro sobre a cidade de Cratheús. Nada deixou
passar sem uma anotaçãozinha, mesmo que fosse um assuntos de igreja, como o do comunista
Dom fragoso e o seu primo, o Pe. Bonfim, anota estimas para com os militares ou
desenha, com palavras garbosas, as ânsias ardentes das moças da cidade, sua
caneta rabiscava tudo, depois que sua língua muito discursava.
Havia quem comparasse o
advogado Nonato Bonfim, na defesa de uma causa do júri, com o criminalista, mas
também rábula no inicio da carreira, Quintino Cunha: mordaz nas suas
observações, satírico no senso de humor, mas sempre uma refinada presença de
espírito.
Enquanto caminha, rumo à
bodega do comerciante Assis Macaco, antecipando o gostinho amargo de cerveja, um
pretérito filme passa na sua cabeça: momentos de quando a família teve que
fugir do povoado de Quirino, tangido pela seca, e vão escapar na cidade de
Campo Maior, no Piauí. O instinto de aventureiro o faz se alistar no Exército
da Borracha, parte ao desconhecido Amazonas e perambula pelos perigosos igarapés
do Acre. Depois de muito penar nas terras estranhas, retorna, sentindo no
regresso do trem da vida uma imensa alegria.
Autodidata, pelo hábito da
leitura, um vício constantemente saciado, o que lhe facilita ingressar como
funcionário dos Correios. De palavra fácil, o que lhe capacita a uma boa
oratória. O ideal político que corre em
suas veias faz vibrar as emoções e ferver os sentimentos, mesmo sabendo que a dissimulada
arte nos negócios públicos não tem sua fonte no espírito humano, ela rebenta é mesmo
do fedor das lamas, como os porcos nos chiqueiros. Foi eleito vereador, por
quatro legislaturas, desde a época que o poder não estava tão associado ao vil dinheiro.
Na quinta vez em que se candidatou, perdeu a eleição e culpa ao primo Pe. Bonfim,
que na apuração dos votos lhe revelava: - Nonato, eu entrei neste barco em que nós
estamos a viajar, mas infelizmente vamos rodar! Ainda teve outra parenta que se candidatou, só
para lhe atrapalhar, a Auristela, e não adiantou nada ele ter criado um depreciativo
slogan para a prima gordinha: - Não vá na onda, não vote na redonda! Ficaram
tontos, juntos, os três afamados Bonfins.
Recorda-se dos trabalhos como
advogado e de como, uma vez, desarmou o promotor Anicéfalo Fernandes, quando
este lhe interpelou para explicar o que era ressaca, por ter usado esta palavra
com desculpa por um crime cometido por seu cliente, após uma homérica
bebedeira: - Então, explique-me, Dr. Nonato, o que é mesmo uma ressaca? E usou
um artificio incomum, para lhe responder: - Vossa Excelência pode até não
saber, mas seu pai, o Raimundo Fernandes de Oliveira, é um profissional nisso!
O promotor ficou calado.
Sente o gostinho da recompensa
de seu trabalho como rábula ao lembrar-se de que no fórum Olavo Frota de Cratheús
tem seu nome gravado numa parede, batizando uma das salas daquele digníssimo
Tribunal de Justiça. Só uma mágoa o rói por dentro, pois depois de muito
trabalhar na eleição e elogiar o atual prefeito da cidade, a paga que recebe é
ser cortado da lista de funcionários, o dinheirinho era pouco, mas vai lhe fazer
falta. E como o velho poeta comediante Quintino Cunha, maquina uma ardilosa
vingança.
Ao chegar à Bodega do Assis
Macaco, após tomar o primeiro gole da geladinha, diz para uma plateia atenta: -
Meus amigos, hoje, eu vou provar para vocês que na Prefeitura de Cratheús só
tem ladrão! Pega o telefone do orelhão, ali na calçada, e liga para a
secretaria do prefeito. Triiiiim! Atendem. – Bom dia, minha amiga secretária,
aqui é o Nonato Bonfim. Eu gostaria de falar com o Seu Ornesto, ele está ai? –
Mas Seu Nonato Bonfim, aqui não trabalha nenhum Ornesto , não!
Ele nem desliga o telefone,
para que a secretária também possa ouvir e se dirige para a ébria plateia, mas
bem atenta:
- Eu não disse a vocês, meus
amigos! Agora está confirmado, na prefeitura de Cratheús não trabalha nenhum
honesto não!
(Os livros do Advogado Nonato
Bonfim foram doados, pela família do mesmo, à Câmara Municipal de Crateús. Mais
da metade desapareceu, evaporou, e os mais valorosos, muitos se deterioraram e
o que sobrou, a digníssima Câmara cedeu para a biblioteca da Academia de Letras
de Crateús. E achamos, por bem e por merecimento, batizar a nossa coleção
pública de livros de BIBLIOTECA NONATO BONFIM.)
Raimundo Cândido
Cratheús me transmite
ResponderExcluiruma impressão cosmopolita
típica de grandes centros urbanos,
um caldeirão cultural
nas descrições de Raimundo Cândido.