quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Encontro Marcado



Um sujeito bateu palmas na minha porta: Plá! Plá! Plá!  Eram pancadas intensas, nervosas que mostravam uma aguda impaciência: Plá! Plá! Plá! E logo ao meio-dia, enquanto tiro uma restauradora soneca: Plá! Plá! Plá! Minha sesta é sagrada, são poucos minutos de superficial letargia, mas que me fazem muito bem. Não suporto quando alguém, inconveniente, interrompe esse breve descanso, eu fico abusado, passo o resto do dia mal-humorado. Levantei-me, a contragosto, e fui atender, já mostrando um descontentamento estampado no rosto.   
                - Quem é que...
Parei. Uma mistura de incredulidade e assombro extinguiu o aborrecimento. Ia até perguntar que urgência era aquela, mas fiquei com as palavras presas na garganta quando vi a fisionomia do indivíduo que batia palmas. O rosto exibia um olho esbugalhado, como se a cabeça tivesse sido amassada numa prensa, demonstrava total cegueira, e com as pernas da calça cáqui no meio da canela, pegando marrecas.  Já tinha visto aquela pessoa, há muito e muito tempo atrás. Ele me reconheceu, pela voz na certa, mas antes tratou de me acalmar.  
- Fique calmo, Seu Raimundinho! Sou eu, o Fausto Araújo.
- Mas, mas... É o mesmo o Fausto? É o Fausto mesmo?  Mas você não estava...
  Não tive coragem de completar a frase e ele intercedeu, explicando.
- Sim, eu já dei o último suspiro na face Terra, porém você precisa mudar suas convicções sobre a vida e sobre a morte. E eu não vim lhe lembrar do seu aniversário, como de costume, vim lhe avisar do encontro marcado por você e que, na certa, já esqueceu, não foi? Se apresse homem, vamos logo, que o pessoal está impaciente, de tanto esperar lá na Praça da Matriz. Foi o Luiz quem me pediu para vim lhe lembrar do encontro. Vamos!
 Não me lembrava mesmo, de nenhum encontro definido por mim. E muito menos deste tal de Luiz. Oh mente, essa minha! Coloquei uma camisa e me apressei, pois o Fausto disse que eu já estava atrasado!
Ao dobrar a esquina da Rua Firmino Rosa com a Rua José Coriolano vejo um grupinho, de umas dez pessoas, reunido em volta do busto do autor do homérico poema O Touro Fusco. Dão sinal com as mãos e me aproximo, devagarzinho, como que tomando chegada. Estava cismado, receoso, de orelha em pé, como dizem.
Fui logo distinguindo alguns rostos, debaixo da forte incidência do sol do meio-dia: o professor Luiz Bezerra, a Madrinha Francisca, um cidadão muito elegante que logo identifiquei com o dono do busto exposto na praça, dois deles já os tinha visto em retratos, o Sr. Amâncio Correia Lima e o Dr. Luiz Chaves e Melo, mas os outros eu não conseguia precisar quem eram.
O Prof. Luiz Bezerra, mostrando liderança, e como sempre, puxa o assunto.
- Estamos aqui reunidos, professor Raimundo Cândido, por causa da promessa que você nos fez, de colocar os nossos bustos ao lado da escultura do poeta José Coriolano. Como é que vai ser? Quem dos amigos vai querer falar sobre isso? E se dirigiu os demais, como se passasse a palavra da vez.
O Dr. Luiz Chaves e Melo, com uma voz estranhamente nasal, aproxima-se e diz: - Primeiro deixe eu lhe dá um abraço, professor. E não quero lhe cobrar nada, as promessas são executadas com mais firmeza no coração da gente, e isso, eu já sei que você cumpriu.
Amâncio Correia Lima, alto, elegante, apertou minha mão e falou: - Foi um prazer em lhe conhecer, caro professor. Quero que leve meus comprimentos ao Jovem Ferreirinha, aquele meninozinho que tanto me ouviu contar histórias, sentado na calçada da minha casa. E quanto à promessa, quero que faça uma poesia, que eu já fico contente.
Um cidadão baixo, forte e muito zuadento, aproxima-se e confessou em alto e bom tom: - Sou o Alexandre Bonfim, de onde começou a história das famílias dos Bonfins do Curral Velho. Fiz muitas promessas, algumas eu cumprir e o que não foi possível efetivar, cumprida está, entendeu Raimundo? Aqui, acola, vá pelo Curral Velho e veja se descobre mais poetas por lá.
Dois cidadãos, que estavam de batinas pretas, se identificam, eram o Pe. Rosa e o Pe. Macedo. O Pe. Rosa queixa-se: - Meu querido Raimundo, numa de suas crônicas, você deu a impressão que eu jogava muita praga no povo e não era bem assim, é que a política de Cratheús é muito fervorosa, mas eu não misturava as coisas. E quanto a sua promessa, se você não cumprir, não vou jogar praga, pode ter certeza!
O Pe. Macedo sorria, um sorriso zombeteiro, acho. Disse: - Você já me homenageou, professor, como um galo, e no alto da Torre da Matriz. Muito obrigado, meu amigo!
Um baixinho, gordinho de olhos vivos e brilhantes demonstrando muita inteligência, se apresenta: - Sou o Lisboa Rodrigues, poeta e educador, e todo professor merece um busto por ser um herói nesta injusta Nação. Mas, para mim, não precisa, pois só em ter vivido nesta pedra preciosa deste rico diadema do chão cearense já é ser honrado em vida.
Um cidadão que me olhava de longe, de esguelha, desconfiado, falou: - Sou o Francisco Cavalcante, o acendedor de lampião da praça, e eu não queria busto mesmo não. Para que? Para o povo dizer “Oh, o coitadinho do Franquim, o primeiro que a Maria Fumaça matou”. Pode ir para lá com seu busto, quero não!
A professora Madrinha Francisca, que já estava do meu lado, aproveita para me dá dois abraços e bem apertados. Fala: - O primeiro abraço é meu, o segundo eu trouxe da Delite, que não quis vir, você sabe como é ela, né? Não gosta de aparecer, mas eu... Hum, se você conseguir colocar o meu busto na praça eu vou muito lhe agradecer!
Por último foi um cidadão que nunca tinha visto, nem em retratos, e tinha uma tez branca, olhos claros, alto, carrancudo, se aproxima e aperta a minha mão. O dedo indicador estava dobrado, como a apertar um gatilho de uma arma e se identifica: - Sou o Alexandre Mourão IV, aquele do Bacamarte dos Mourões, do escritor Nertan Macedo. Você conhece meus feitos, quando dizia que fazia uma coisa, eu fazia mesmo, nem que chovesse bala ou canivete. Sei que não mereço um busto, pela vida cangaceira que levei e por ter perturbado a paz até do Imperador Dom Pedro II, mas você me colocando nos seus escritos, eu também já fico muito contente.
Já tinha corrido um calafrio na minha espinha, e mentalmente dizia: - Como fui prometer tudo isso e a tanta gente?
Foi quando o Prof. Luiz Bezerra, retomando a palavra, me tranquiliza mais ainda: - Pois é, Professor Raimundo Cândido, viemos lhe libertar das promessas dos bustos, pois homenagem maior é quando  a gente fica na memória e no coração do povo. Não é?
- Plá! Plá! Plá!  - Plá! Plá! Plá!  - Plá! Plá! Plá! 
As palmas continuavam ecoando, insistentes, lá fora e, assustado, acordei. Mentalmente desejei: “Tomara que seja o cego do Fausto! ” mas, bem logo pensei “ E se for um cobrador, batendo na minha porta?”
  - Plá! Plá! Plá! 


Raimundo Cândido      

Um comentário:

  1. O realismo fantástico
    transmitido através dos sonhos,
    pode ser considerado
    uma boa fonte de histórias
    a serem contadas
    sem tempo nem espaço.

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