terça-feira, 24 de maio de 2016

O Trem da ALC



                              

Os “imortais” da Academia de Letras de Cratheús, por não terem onde caírem mortos, se alojaram sobre os trilhos do trem, literalmente. A sede da ALC acoplou-se aos barulhentos vagões dos cargueiros, que passam roçando nos prédios da centenária Estação Ferroviária e rumam ao sem fim das férreas linhas paralelas.
                Talvez pelo tom poético, talvez pela saudosa lembrança ferroviária contemplamos e ouvimos as rodas do trem vibrarem, diariamente, em retilíneos versos, enquanto passam pela nossa porta: - Vup vup vup tchuc tchc tchc piuiiiiiiiiii...
Um encantamento pelas ferrovias enfeitiçou, fervorosamente, diversos poetas brasileiros: Como o bardo Manoel Bandeira “Vou depressa, Vou correndo, Vou na toda, Que só levo, Pouca gente, Pouca gente, Pouca gente...”  ou o Bituca Milton Nascimento “O trem que chega / É o mesmo trem da partida / A hora do encontro é também despedida / A plataforma dessa estação / É a vida desse meu lugar...” ou o poeta Raul Maluco Beleza Seixas com o trem das sete “Ói, ói o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis, olha o trem. Ói, ói o trem, vem trazendo de longe as cinzas do velho aeon Ói, já é vem, fumegando pitando, chamando os que sabem do trem...”  Ou, então, Luiz Gonzaga, o Lua, na música De Teresina a São Luís “O trem danou-se naquelas brenhas / Soltando brasa, comendo lenha / Comendo lenha e soltando brasa / Tanto queima como atrasa / Tanto queima como atrasa” Mas, quem verdadeiramente poetizou o trem foi o grandioso maestro Heitor Villa Lobos que colocou, numa composição magistral, uma orquestra inteira imitando o barulho e o rebolado do trem sobre os trilhos, repleta das alegrias e dos choros das despedidas nas estaçõezinhas deste imenso Brasil.  Trompas, tímpanos e uma formação de instrumentos de cordas como violinos, violas, violoncelos e contrabaixos em harmonioso transe poético a reproduzir o som das rodas nos trilhos. E, para completar a belíssima obra, Ferreira Gullar colocou a letra de seu poema: “Lá vai o trem com o menino / Lá vai a vida a rodar / Lá vai ciranda e destino / Cidade e noite a girar / Lá vai o trem sem destino...”
É muita saudade! É muita dor! É muito fervor! E só entende quem é como o Padre Luizinho Ximenes, que no Livro Paixão Ferroviária, escreveu um belíssimo soneto sobre o trem, Recuerdo: “ Recordo... e, na lembrança colorida /  de meus dez anos, a saudade tem / não sei por que, a forma parecida / com um trem cargueiro na distância, além...”  
Quando, em 1988, o ultimo trem de passageiros circulou pela Estação de Cratheús, o calçadão da Estação, antes repleto de alegrias, ficou transbordante de saudades. Hoje, os velhos funcionários da antiga RFFSA, de vez em quando, passam pela porta da ALC como a procura de algo que o tempo insiste em apagar. E o passado os desbota junto com as suas lembranças doloridas de uma era gloriosa. Um dos que deixou de vir beber estas lembranças que emanam dos trilhos da Estação foi o Senhor Antônio Goró, hoje nonagenário, o último maquinista da velha Maria Fumaça. Seu Antônio conduzia a locomotiva com 12 pranchas de passageiros até a cidade de Teresina, no Piauí, e sem nunca acontecer um acidentezinho sequer. Parava o trem até para tirar os animais que estavam repousando dentro dos perigosos cortes, mesmo atrasando o comboio e correndo o risco de ser punido pelos incompreensíveis fiscais da Rede Ferroviária Cearense.
Festa grande era quando Seu Antonio Goró precisava fazer a manobra da locomotiva, no Viradouro, um belíssimo monumento que se encontra preservado que dentro do Clube do Censório de Cratheús. A multidão ficava observando a maquina entrar, lentamente, no grande circulo e soltava uma réstia de nuvem branca para aliviar a pressão dos pistões, fazendo um barulhinho característico. Os funcionários giravam, manualmente, o gigante de ferro sob os olhar vidrado da criançada, espiando por baixo das penas dos adultos curiosos.
Não faz muito tempo recebi, da Professora Luzia Neide Coriolano, um convite para conhecer Minas dos pães de queijo e das mineiras, Ôoo trem bão, sô! E a terra dos trens, também. Em BH nos juntamos com um primo cordato e gente muito boa, como todo mineiro que nunca perdeu o trem, o Eudes Albuquerque, que nos ciceroneou até a cidade histórica de Tiradentes.  Pagamos a velha Maria Fumaça e fizemos um passeio mágico, uma volta no tempo, pelas paisagens mineiras e dentro de um vagão todo de madeira, percorrendo 13 km num trilho de bitola estreita, até São João Del Rey, a terra de Tancredo Neves. Voltei à época em que o Trem Azul levava e trazia passageiros de Ipueiras, Ipu, Sobral, Fortaleza para os Sertões de Cratheús. O trem foi um forte elemento que impulsionou o progresso da nossa pacata cidade. Como os navios que trouxeram os portugueses para o Brasil, a Maria Fumaça trouxe um tesouro humano para a Princesa do Oeste e a cidade se encheu de gente empreendedora, mas aqui acolá vinha um maluco também.
A Academia de Letras de Cratheús tem o privilegio e a honra de estar assentada num riquíssimo monumento histórico e com isso vem a obrigação de resgatar e resguardar a história de nossos primeiros passos para o progresso. O erro dos governantes em abandonar completamente o transporte ferroviário é como a ferrugem que vai corroendo os ferros velhos, com o passar do tempo não tem mais jeito. Nevermore!!! Nunca mais veremos o trem de passageiro circulando por essas bandas, infelizmente. Mas, em compensação, a ALC é, hoje, um inspirado trem, o trem da memória, o trem da saudade. Temos um grande quadro da Maria Fumaça na parede e umas réplicas das locomotivas à óleo e a carvão, a nós doadas pelo generoso ferroviário aposentado Luiz Quiba, peças que chamam atenção para aquela época áurea do sertão.
Uma afamada poetisa da cidade Ipueiras e integrante da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, a Dalinha Catunda, que sempre vinha de trem para Cratheús, por aqui esteve, novamente, e desta vez só para matar a saudade dos trens e nos deixou uma belíssima poesia, que é a forma de um  vate petrificar, na alma e no ar, as lembranças que se foram: “Como não sentir saudades/ Da vida no interior / Do trem que ia e voltava / Levando e trazendo amor / Do choro na despedida / Que havia em cada partida / Na face do sonhador.”
E, se você sofre do mal crônico da saudade dos trens de passageiros, venha para a sede da ALC, é com andar novamente dentro dos velhos vagões de madeira, rumo ao destino que você quiser ir, olhado a mata de mufumbo passar rapidamente pela janela de madeira onde entra uma chispa de fuligemzinha da queima de lenha e se ouve um alegre apito de despedida: Piuiiiiiiiii.... Venha!
Raimundo Cândido

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