quarta-feira, 27 de julho de 2016

Maria Bonita



 ( Um conto do professor/poeta André)

Acordara por volta das 6:30, minha mãe já estava com o café que fora torrado em casa, na panela de ferro, pronto no bule de águida, azul. Aquele cheiro de café donzelo invadiu minha alma e as salas, corredores, alcovas e cozinhas das casas vizinhas. A tapioca, fiel companheira, completou a minha primeira refeição simples como a minha vida de criança de 12 anos.

Peguei meu saco de plástico que servia de embalagem de leite em pó oriundo da Aliança para o Progresso, uma espécie acordo que nos anos 60, o Brasil e os Estados Unidos mantinham, entre si.
Aquele saco era o espaço onde eu guardava meus materiais da escola. Peguei o livro de geografia, não me lembro mais quem era o autor. Era um livro que apresentava conceitos e definições de aspectos e acidentes geográficos, como rios, lagos, golfo, cabo, ilha, montanha, depressão, planície, entre outros.

Lá estou eu estudando, estudando não, decorando. Ora, em 1966 a pedagogia praticada nas escolas era a tradicional, onde o aluno era apenas um banco para serem depositadas informações sem questionamentos. Aluno inteligente era aquele que conseguia decorar o ponto, ou seja, a lição delineada pelo professor.

Tinha chovido muito na noite anterior e o sol resolveu dar as caras, talvez com o propósito de sofisticar a embrejada rua Baturité, hoje, Gustavo Barroso, onde vivi minha infância, adolescência e iniciado na vida adulta.

Pois bem, naquela manhã de inverno e de sol o tal livro de geografia foi meu companheiro. Era dia de arguição na escola a temida aprova oral.  Li, estudei, decorei. Especializei-me no rio Amazonas a partir de sua nascente e em seus afluentes da margem esquerda e da direita até sua rota de colisão com Atlântico.

Por volta das 9:30 fui tomar banho no rio Poty. Naquele tempo era um rio piscoso. Bom para o banho e em suas margens surgiam cacimbas de águas cristalinas e um pouco azulada que abastecia a cidade de Crateús, transportadas em lombos de jumentos, em pequenas âncoras denominadas também de canecas feitas em madeira. Pelos caminhos que nasciam das margens do rio, mulheres desfilavam com latas de água na cabeça, adolescentes e homens diversos conduziam a água pura em baldes e distante de coliformes, em carrinhos ou em pedaços de varas grossas, tendo como base o ombro, cantando canções da época.

Onze horas eu já estava a caminho da escola. Da Rua Baturité até o externato Nossa Senhora de Fátima, era uma viagem. Uns dois quilômetros e meio. Venci a Central, estrada construída pelo 4º Batalhão de Engenharia e Construção, que terminava na via férrea, hoje, Avenida Sargento Hermínio. Segui Pela Rua Coronel Zezé, conhecida como Beco da cachaça, toda pavimentada de perfeitos paralelepípedos, cruzei a praça da matriz codinominada de Avenida, vislumbrei o palácio do bispo, uma bela arquitetura, O Dom Fragoso tinha chegado há pouco tempo em Crateús.

Já próximo da escola, sentei-me na calçada do capitão Eduardo, farmacêutico e bioquímico do 4º BEC e fui acolhido com uma deliciosa sombra de um pé de castanholas. Retirei da sacola o livro de geografia, fiz uma revisão da lição, estava tudo na minha cabeça de adolescente.

Às doze horas, eu já estava na sala de aula, sentado, apertado no banco de madeira comprido, próprio para acomodar cinco alunos. Entretanto, a demanda por vagas para o Externato era tamanha que de sete a oito alunos se acotovelavam  naquele assento, tendo como apoio de escrita, na sala de aula, mesas de madeira maciça já rotas de tanto uso e o castigo do tempo. Todos os alunos ainda davam aquela olhada final no descritivo livro de geografia.

A mestra entra na sala. Todos se levantam. A professora era a saudosa Dona Delite. A sua escola era, também, o seu lar doce lar dividido entre seus filhos que a ajudava no exercício da docência. O Júlio, era o professor de matemática. Tanto dava aula como fumava. Um excelente professor. Nunca tive muita efetividade com a disciplina de matemática.

Sempre antes do início da aula, Dona Delite invocava fluídos positivos aos Deuses do conhecimento, através de Pai Nosso e Ave-Marias. Mas parece que naquele dia os deuses não estavam muito a favor de muitos alunos. Como meu nome é José, não fui um dos primeiros a ser chamado e, assistia o desenvolvimento daquela prova oral como também a alegria dos que respondia corretamente às questões que não eram muitos e a tristeza e dor dos que erravam. O silêncio na sala era tão profundo que nenhum ruído externo era capaz de quebrar tal quietude.

Finalmente, chegou a minha vez. Na minha caminhada para o palco da arguição unilateral com a cabeça  cheia de acidentes geográficos vieram as fatídicas perguntas: “Descreva o rio Amazonas com todos os seus afluentes da margem esquerda e direita a partir de sua nascente?” Fiz bonito. Dona  Delite olhou-me com seus olhos mansos e cheios de satisfação com minha resposta. Ela ainda não tinha realizada esta questão completa para os outros. A segunda pergunta, talvez como prêmio por ter sido brilhante na primeira, fez uma com resposta curta: “O que é um Cabo?” A minha resposta foi imediata: “uma porção muito grande de mar que avança sobre a terra”.

Naquele momento, aquele mesmo olhar sereno e manso pega minha direita como se fosse cumprimentar-me por tal feito. Olha para alguém perto e pede a Maria Bonita. A Maria Bonita veio em minha direção, com a cor vermelha da aroeira, rígida, forte, com o corpo bem trabalhado, talvez por um perfeito escultor. A sua cabeça redonda, parecida com uma abóbada geometricamente bem distribuída e bem torneada, pairou no ar. Desceu vertiginosamente em queda livre como se fosse um foguete a aterrisar no seu alvo bem calculado: A minha mão. Confundira os aspectos definidores de golfo com cabo  que são acidentes geográficos contrários.

A princípio em não entendera o motivo daquela dor que tomou conta de minha mão de adolescente em formação, ante o olhar da turma entumecida pelas minhas lágrimas que não caíram na minha alma nem regaram o chão das minhas caminhadas. Apenas ouvi da grande mestra que a minha resposta estaria correta se tivesse indagado a definição de golfo. Aquele foi o meu primeiro último bolo construído com os ingredientes dolorosos da Maria bonita.

Com o passar do tempo os conceitos de pedagogia foram se transformando e a Maria Bonita, aos  poucos, foi sendo esquecida pelos seus mais diversos namorados.

Reza a lenda que a Maria Bonita ainda vive guardada a expiar seus pecados em algum lugar do Externato Nossa Senhora de Fátima em função das transformações educacionais que envolveram o século XX e permeiam o XXI.



Conto produzido por José Soares André (prof. André)
22 de julho de 2016




Vocabulário.
Cabo – Porção de terra que entra pelo mar
Golfo – Porção muito grande do mar que avança sobre a terra.

2 comentários:

  1. Muito bom... a leitura fez refletir e recordar de momentos de minha vida estudantil!

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  2. Estão abertas as inscrições para o 25º Concurso Nacional de Poesias Augusto dos Anjos.

    A Ficha de Inscrição está disponível em nosso blog para ser preenchida e enviada on line, além de ser impressa para envio junto com as poesias
    .​

    http://www.academialeopoldinense.net/2016/08/ficha-de-inscricao-para-o-xxv-concurso.html

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