quarta-feira, 21 de setembro de 2016

João Calunga – Estrela Solitária





O lugar mais bonito do mundo, atestam alguns saudosistas, é aquele que trazemos guardado no recôndito do coração. Esse belo ambiente, habitualmente, é uma colina repleta de árvores frondosas, com uma ligeira declividade para um rio que abranda o clima, que revitaliza a fauna e reaviva a flora verdejante. Todo local com essas características é, naturalmente, designado de Boa Vista. No Sertão de Cratheús existiu a fascinante Boa Vista dos Correias, que ficava no começo da  estrada carroçável e que é a continuação da Rua Frei Vidal da Penha, a antiga estrada principal de quando éramos um povoado chamado Príncipe Imperial. Um paraíso predestinado às deslumbrantes paisagens, às telúricas poesias e ao celeiro de gente da mais alta estirpe.
Ali, no patamar da Boa Vista, no inicio do Século XIX, o poeta José Coriolano, mal entrara na adolescência dos 14 anos, já ruflava asas sonhando com um longo voo ao sem fim do mundo poético. Naquele terreiro de fazenda, muitos anos depois, Cícero Marçal, o encantador de cavalos, confabulava com seus equinos machadores para que orquestrassem os passos no desfile pelas ruas da cidade, como se fosse num grande picadeiro de circo.
Ali, naquele bucólico sertão, na casa da Dona Iaiá, mãe do menino João, um radinho de pilha tocava as músicas da Jovem Guarda nos anos 60 e, aos domingos, se juntava um grupinho de rapazes, para torcer pelo Botafogo carioca, onde um tal de Mané Garrincha fazia as suas estripulias, dançando com a bola no pé, deixando os adversários tontos de tanto dribles desconcertantes.
Num campinho, entre as moitas de mufumbo e espinhentos mandacarus, um menino de 14 anos já mostrava as habilidades de Garrincha e alimentava um sonho.  Sonhava como o poeta Coriolano sonhou, em levantar um longo voo, do patamar da Boa Vista rumo ao sem fim do transitório mundo da bola de futebol.
Às vezes, inexplicavelmente, a fatalidade interrompe a fantasia das crianças. E o destino não quis que o sonho de João se materializasse. O menino driblador se viu com uma repentina dor no pé, que subia rapidamente pela perna. O Dr. Luiz Chaves e Melo e o medico do Batalhão, Dr.  Zé Fernandes, detectam paralisia infantil nas pernas e nos anseios de João. Mesmo com injeções diárias, aplicadas pelo Chico Saia Veia, um enfermeiro prático que andava impecavelmente de branco, a doença não cedeu e entorpeceu as pernas do menino, que passou a andar de muletas.
Muitos sucumbem com os reveses, mas João sobreviveu, sustentou-se nas asas de um sonho e na arte de tocar realejo, sanfona, bandolim, e o Calunga renasceu, transcendente para o futebol, jogando pelas pernas tortas de outros meninos no time que formou: O famoso Botafogo do João Calunga!
Foram tantos os meninos bons de bola: Gonçalo, Piranha, Bugre, Chico, Baião, João Henrique, Rildo, Robério, Edmar, Deoclides, Berreca, Franklin, Olavinho, todos orgulhosos de ostentarem a Estrela Solitária no peito, e davam um espetáculo digno dos melhores times de futebol dos bons tempos, corriam pelo chão duro de terra batida do Campo dos Vencedores, como se jogassem pelo verdadeiro Botafogo de Garrincha e em pleno Estádio do Maracanã.
João Calunga era instrutor, amigo e pai para aquela garotada e a concentração do time era na casa da Ponte Preta. Muitas vezes, ao término de um jogo, em particular, chamava um dos garotos e aconselhava: - Meu amiguinho, você entrou muito duro naquela jogada. Isso foi desleal! Não faça mais isso não! Um carrinho daqueles pode acabar com vida de um atleta. E ali, abraçava o protótipo do zagueiro violentão, sabendo que o futebol tem destas coisas mesmo, mas sempre preferia o jogo da compreensão e da paz, como fez questão de levar a vida, embora cheia de reveses.   
Às vezes, pelas dificuldades financeiras, ele chamava o melhor jogador da equipe, o Robério, para ajuda-lo na costura das bolas que estavam se rasgando. Chegaram a cortar couro para, eles mesmos, com agulhas e suvelão, fabricarem as redondinhas que enchiam os olhos dos pais dos meninos que iam assistir aos jogos no Campo dos Vencedores.
Convite, para jogar fora de casa, nunca faltou, desde quando o jogador Edmar Soares passou a relatar, por telefone, o dia-a-dia do Botafogo do João Calunga num programa desportivo da Rádio Educadora. Era uma multidão para assistir os meninos do João Calunga jogando nos campos do interior, no campo do Cremilândia , no campo do Cruzeiro, e nos campeonatos dos bairros onde a estrela solitária crateuense sempre brilhou. Mas era para isso mesmo, como um técnico disciplinador e exigente que até nos treinos apitava falta quando Robério, o craque do time, chutava com a perna direita, pois queria-o chutando com as duas pernas e o atleta ficou ambidestro. Imagine, e já era um perigo com uma perna só!
Como o próprio João, evoluído espiritualmente, o Botafogo também prosperou, e formou-se um time de adultos. Foi quando luziram grandes estrelas como Mazola, Pai-da-Mata, Nonatim Teixeira, Nene Pagão, Vieirão, Chico Rufino, o grande craque Nicolau Matos, mas a maioria dos jogadores era de oleiros, que saiam das fábricas de tijolos, direto para os treinos, ainda lambuzados de barro. Atletas que, verdadeiramente, tinham amor ao time e ao futebol, bem diferente da maioria de hoje, que só “suam a camisa” ouvindo o tilintar do dinheiro.
Mesmo a mais forte das árvores um dia cansa e, se desvanece em pó. João trazia a vida restrita no peito, o prazo se venceu e ele se foi. Foi para o lugar das estrelas solitárias, na certeza de que deixou uma sementinha plantada no Campo dos Vencedores, no Campo do Cruzeiro, e em todos os campinhos de futebol dos Sertões de Cratheús. E, na abobada do firmamento, uma estrela solitária olha para o sertão de Cratheús e aplaude.
Aplaude o Edvan Vieira Barros, da ASSEJOC, por continuar o seu digníssimo trabalho com os jovens atletas crateuenses, regando esperanças, acendendo sonhos, revelando talentosos e os enviando para o Ceará Sorting, para o Tiradentes e até para os grandes times do Sul do País.
Um dia João Calunga, como uma estrela solitária no firmamento, já sem muletas, aplaudiu cada lance, e até chorou de alegria pela realização da 1ª Copa João Calunga de Futebol de Base para garotos entre 15 e 17 anos. Calunga, com o coração povoado de saudades na imensidão dos Céus, aplaude os meninos, que despontam para o futebol, neste difícil e isolado sertão. E quem o conheceu sempre escorado numa moita de mufumbo na lateral do campo, dando instruções àquela meninada, também o aplaude! E aplaudimos, como tendo feito um belíssimo gol de Garrincha, porque constatamos que o seu trabalho proporcionou e continuará proporcionando o fruto da dignidade, da cidadania e da emoção.  Valeu, grande João Calunga do Botafogo, senhor absoluto do Campo dos Vencedores!
Raimundo Cândido

Um comentário:

  1. Até que enfim mais uma
    esplêndida prosa poética
    de um grande encantador de ouvidos
    daí desta mitológica Ribeira do Poti,
    continue por favor!

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