Vi-me, recentemente, cismando
com as respostas para uma difícil pergunta: O que é um Milagre? O farfalhar das
folhas no afago do vento, o brilho da luz descortinando a escuridão, a Terra
girando no vazio do firmamento, uma flor brotando no asfalto, os avanços da
ciência em prol da vida, o sorriso gratuito de uma criança... Iluminei-me, ainda mais, quando me lembrei dos
prodígios de Jesus de Nazaré, uma pessoa extraordinária e de pele negra com
cabelo crespo, segundo a própria Bíblia e que deu luz aos cegos, voz aos mudos,
o caminhar aos aleijados, saúde aos enfermos, vida aos mortos! Negro??? Há de
me perguntar. Sim, Negro! Jesus nasceu na África e é descendente da linhagem de
Caim, com uma sequência genealógica de pessoas de pele escura, como Tamar, Raabe,
Rute, Betsabá e a própria Maria, sua mãe.
Os milagres, que me avivam os neurônios,
são as inexplicáveis interferências dos escravos, que falecerem nos sertões de
Cratheus e se mostram milagreiros pelo poder da fé do sertanejo, esperançoso
nas forças misteriosas dos céus. Será que por serem da cor de Jesus e pelo
sofrimento por que passaram, adquiriram esse poder de interceder por aqueles
que lhes pedem auxilio? Eu creio que sim!
E foram muitos: Felícia, da
localidade de Poti, escrava da perversa senhora Joana Mereré, que a castigava,
diariamente, com chicotadas nas costas e com queimaduras que nunca saravam.
Felícia morreu no local em que imaginava ser enterrada, transformando-se num santuário
de pagamento de promessas. Uma negra santa, na voz do Povo, sim! A Maria dos
Milagres é uma escrava milagrosa que intercede pelos devotos de Éden, Valente,
Lagoa de Manoel Costa, Grota Verde, Bonito, Arvoredo e Canto dos Pintos. Muitos
a veneram na fé, pois são atendidos em suas promessas. Uma negra santa, na voz
do Povo, sim! A escrava Bernaldina, que se enforcou no Poço da Confusão em Sto
Antonio dos Azevedos, era despertada com um pontiagudo esporão com que lhe
cutucavam o fundo da rede para uma eterna luta de sofrimento e dor. Uma negra
santa, na voz do Povo, sim! A negra Nazara que, ao fugir de um cativeiro, morreu
de fome e sede nos limites de Novo Oriente e Independência. O túmulo de Nazara
atende aos romeiros de Porcos, Belém de Campos, Timbaúba, Assentamento Cantinho
e Lagoa dos Patos. Também uma negra santa, na voz do povo, sim!
Um mapa estatístico da
Província do Piauí (1854) mostra a Vila Príncipe Imperial, Cratheús atual, com
9707 cidadãos livres e 1028 escravos. Mesmo com a “libertadora” Lei Áurea, de
1888, foram poucos os escravos que sobreviveram ao padecimento de um dolorido
existir e nunca souberam que estavam libertos. No lombo da Serra da Ibiapaba,
no final do século XIX, era uma riqueza só, em Jatobá, Uruçu, Cafundó e
Palmeiras se produziam cachaça, rapadura, farinha, manzape e beijú com ajuda
destes explorados trabalhadores negros. Tudo, dádiva do Riacho Oitis que corre pelo
dorso da Serra Azul, de Palmeiras na Ipaporanga até desaguar no Poço Pesqueiro,
do Rio Poti, no Distrito de Ibiapaba.
Na localidade de Palmeiras,
bem acima da ladeira do Humaitá e num produtível sitio,
a casa de farinha e o engenho funcionavam a todo vapor. Descascar a mandioca,
ralar no caititu, levar ao cocho para pubar, depois ao tipiri para a retirada
da venenosa manipueira e, por fim, torrar ao forno, era uma grande festa. Mas,
o negro mostrava mesmo seu valor, era no engenho, no corte da cana, na moagem,
na fervura do caldo nos tachos, na massadeira para bater, dá o ponto e colocar
nas formas para fazer as gostosas rapaduras.
E havia Benedito, entre os “libertos”, um
jovem, atlético e simpático negro que crescera unido aos filhos de
Sinhozinho. Desde crianças que brincavam
juntos e, entre eles, sinhazinha, a filha única do dono do sítio. Já haviam
notado certas intimidades entre o negro e a moça, mas tomavam como mesura de um
servo a sua dona.
Às vezes o amor, perigosamente, se apresenta
cego e com asas. Cego para não ver os obstáculos e com asas para transpô-los. E
assim se fez. O coração de sinhazinha pulsava ao ritmo do olhar de Benedito
que, louco de paixão, se arriscava, mostrava intimidade demais.
Sabiam da impossibilidade
daquele amor, tinham consciência do risco da união de um escravo e uma
sinhazinha e isso era como pedir uma cruel punição. O amor total é a sabedoria dos tolos.
Benedito e Sinhazinha consumam uma tolice louca, resolvem fugir.
Madrugada sem lua, mal se via
a trilha da descida da serra, rumo ao Humaitá, lá embaixo, no sertão. Benedito já descera muitas vezes os sem fins
de ladeira para entregar as cargas de rapadura e os sacos de farinha nos
povoado de Assis e Águas Belas. Mas agora, com sinhazinha ao lado, a rampa ficava
mais pesada e mais penosa, mesmo tangidos pela pressa e pelo medo. Não demora,
em Palmeiras, a notarem a ausência de sinhá e logo descobrem a fuga dos
enamorados. O raivoso senhor, cercado de capatazes, se prepara como se fosse a
uma guerra, armas brancas e paus de fogo de prontidão, e cavalgam rápido para
interceder a fuga.
O folego de sinhazinha pedia um descanso e, ao
se afastarem do sopé da serra, se abrigam debaixo de uma árvore, sobre uma
convidativa pedra. Um bom rastreador usa
uma visão apurada, um faro aguçado e o espírito em total alerta para os rastros
no ar e no chão. Chegam de surpresa e cercam o local. Sinhazinha dormia com a
cabeça pousada no colo de Benedito. Foi quando opai ordenou que a moça voltasse
para casa e deixou que seus capangas “tomassem de conta” de Benedito. Depois de
muito rogos pelo amado, Sinhá, sem
alternativa, volta para casa na garupa da montaria do pai.
Os assassinos esperam que se afastem para dar
inicio à barbárie. Somente a mata ouviu os gritos do negro, esfaqueado,
impiedosamente, até a morte. E ali, ao
lado da pedra, hoje a Lagoa dos Limas, enterraram Benedito. Alguém, que por ali passava, ouviu a
consciência gritar: - Tu que passas, descobre-te! Aqui dorme um forte que
morreu! E colocou uma cruz, em honra a um nobre escravo e ao imortal amor!
Outro rezou uma oração em louvor. Houve quem fizesse uma promessa por paz e
saúde e foi prontamente atendido. Um
dia, o Raimundo Louro, comerciante do Mercado Central, ia para um forró por ali
e, ao passar pela Cruz do Negro, um vulto tomou-lhe a frente e ele logo entendeu,
voltou para casa. No outro dia soube que ouve uma grande confusão na festa e
alguém procurava um Mereré para matar.
Hoje, na lagoa dos Limas,
perto da trilha do Humaitá, entre Cratheús e Ipaporanga, há um negro santo
atendendo aos rogos do povoado de Assis, Flores, Chora, Coroa, Rosário e Cajá
dos Jeorges, pois sabem que na sepultura da Pedra do Negro, como na Cruz de
Cristo, o Cristo Negro, um escravo santo sempre atenderá as súplicas de quem o implora!
E do meu cismar inicial, chego à conclusão: O fruto da fé é que é o verdadeiro milagre,
então!
P.S. Soube-se que a sinhazinha fora dada em
casamento a um rico viúvo, um fazendeiro para o lado de Oeiras, no Piauí, e que
nascera um simpático negrinho por lá!
Raimundo Cândido
Aquela cruz ali estava
ResponderExcluirsolita no cimo da coxilha,
símbolo da alma do coronilha
que tombou na emboscada,
a qual lhe fora preparada
por covardes perseguidores
a guardar antigos rancores
na vingança premeditada...
Um grande Abraço, poeta das Àguas Doces.
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