domingo, 4 de março de 2018

Antônio Vieira da Vitória – Um seleiro contador de História



             Acompanhei e só no olhar, naquele domingo ensolarado do dia 9 de Julho de 2017, a passagem da 9ª Cavalgada dos Sertões de Cratheús, que vai até o Distrito do Realejo. A coluna de animais, que desta vez bateu recorde, eram de uns 500 belíssimos cavalos, alazões, tordilhos, castanhos, rosilhos, pretos e até pangarés que iriam percorrer os 21 km de marcha equina trotando pela estrada com sons característicos: topok, topok, topok, pa ta ti pa ta tá e que chagavam aos meus ouvidos e me encantavam. Percebi, no meio dos elegantes equus caballus, um menino montado num jegue, o que me deu o direito de também sonhar, como versejou o poeta Pablo Neruda: “O vento é um cavalo / Ouça como ele corre / Pelo sertão, pelo céu. / Quer me levar: escuta / como recorre ao mundo / para me levar para longe.” E vi-me, um centauro, tal homo caballus, todo orgulhoso trotando na concorrida cavalgada promovida pelo Dr. Wagner Claudino Sales, idealizador e organizador do evento.
Hoje, a Cavalgada de Cratheús, é o acontecimento mais tradicional da cidade. A valorização dos animais foi grande, um incremento de cinco vezes seu o valor nestes nove anos em que essa belíssima cena hípica ocorre. Dava gosto ver os cavaleiros e amazonas com suas selas luxuosas e peitorais vermelhos, azuis ou amarelos na frente dos cavalos.
E, só de ver tantas selas bonitas, deu vontade de saber como elas são feitas, então chamei o amigo Rogério Bonfim e fomos à Vitória, lá no Curral Velho, visitar Antônio Vieira, um grande seleiro e afamado contador de histórias, com seus 80 janeiros de vida.
De longe avistamos a casinha branca e um pequeno alpendre improvisado na calçada alta, local onde o mais famoso seleiro de Cratheús exerce sua arte.
Um sorriso tímido, mas de sincera alegria, é o cartão de visitas do sertanejo quando chegamos a sua porta: - O que trás os meus amigos a minha casa? Contamos o nosso propósito e ele não se fez de rogado, explicou-nos tudo e ainda mostrando cada uma das peças: - Primeiro a gente faz a armação, de raiz de oiticica. A parte dianteira, a lua, é de um pau chamado João Mole. Com tudo pronto, vamos enervar, que é cobrir com couro cru e costurado com tiras de couro de bode.  Depois vêm as gualdrapas, já tratadas, grosadas, ligadas às sobrecapas costuradas na máquina. Então encho o suadouro e vou fazer as guardas. Com os arreios prontos, o loro preso aos estribos, a cabeçada com as rédeas e está tudo pronto, é só colocar em cima do cavalo. Antigamente eu fazia duas selas por semana, hoje é uma em duas semanas.
Ouvindo falar assim até me pareceu fácil, mas olhando os detalhes de tudo e a beleza da arte final, percebemos o enorme talento que a profissão exige. Ele continua, pois tem a palavra fácil na mente, como grande contador de histórias: - Aprendi com meu pai, seu Clinio Vieira, que era seleiro e carpinteiro dos bons e dava gosto a gente ouvi-lo contar a vida de todos os Presidentes do Brasil.
Quando Rogério pediu para que o seleiro contasse uma história, ele, então, começou:
- Minhas histórias são do outro tempo, na época que existiam homens duros. Uma vez colocaram uma junta de dez bois de engenho da serra para comer nos pastos do Saco do Punga. Um deles, o grande boi crioulo, de chifres curtos, ficou bravo e ninguém pegava. Era um boi corredor. O Manelzim leitão tinha um cavalo bom, chamado Anu, e mesmo assim não conseguiu pegar o bicho. Então ele propôs ao seu irmão, Zequinha Leitão, que tratasse do Anu no decorrer de um mês, e que ele conseguiria pegá-lo.
 Assim foi feito, tratou do cavalo e foi atrás do animal, mas logo voltou. Manelzim perguntou: - Cadê o boi, Zequinha? Ele respondeu: - O cavalo não deu! Manelzim olhou para os vazios do animal e não vendo uma gota de sangue, falou: - José, cavalo bom também precisa apanhar!  Zequinha baixou a cabeça, se amofinou num canto e não falou mais nada. Manelzim teve um pressentimento que o boi, agora, estava pegue. De manhã cedo saíram e manelzim pensava: “Hoje ele pega, pois vai com muita raiva”. Avistaram o bicho comendo na lagoa do Pau Barriga e se aproximaram por trás de uma grande pedra. Quando o Anu disparou, parecia uma flecha rente com o chão e o boi entrou na mata levando tudo que era moita pela frente. O crioulo era ligeiro demais, a quebradeira de paus parecia o trovão do fim do mundo! Só se ouvia a estaladeira de galhos que caíam e até um eito de cerca de faxina eles derrubaram. Com pouco notou que tudo ficou quieto e, ao chegar ao local, viu o touro amarrado e o Zequinha sentado no chão, estático e sufocado. Colocou um pouco de rapé no nariz dele para que voltasse a respirar e trouxeram o boi crioulo puxado na corda.
O mestre Antônio Vieira, que é um dos últimos artífices do couro e um dos últimos contadores, nato, das histórias do sertão, ao pressentir o nosso interesse por mais relatos, continuou: - Vou contar para vocês  uma história do maior mentiroso destas bandas, o Antônio Leitão. Ele mentia era com arte, dizia que fazia as coisas, mas não fazia, não! Disse que o pai dele, Seu Manoel leitão, falou assim: - Antônio, nesta semana você vai pegar a vaca que está de bezerra nova na serra da Uburaninha e estão brabos. Vá lá, leve seus irmãos e traga a que você pegar primeiro. Ele disse: - Eu vou é só mesmo! Meteu-se no gibão e quando chegou na mata viu um bicho vermelho passar e imaginou, é a bezerra! Passou o cavalo para ela, pegou e amarrou no tronco de uma árvore e nem deu fé que estava com as mãos arranhadas.  Foi para casa avisar que tinha pegue a bezerra e que o pai mandasse busca-la, que estava amarrada em tal lugar. O pai dele até perguntou: - E o que foi isso em suas mãos?  - Eu não sei, pai! Respondeu. – É bom o senhor mandar buscar a bezerra, que eu vou atrás da vaca! Foram ao caminho indicado e logo voltaram.  O senhor Manoel perguntou: - Porque não trouxeram a bezerra? No que responderam: - Não, seu Manoel, lá tem é uma onça vermelha amarrada!
O seleiro Antônio Vieira da Vitória é um valoroso livro cheio de saborosas histórias e, se passássemos o dia por lá, ouviríamos dezenas de relatos que fazem do sertão um local cheio de lendas e repleto de aventuras.
Como um centauro, metade cavalo, metade homem que se encantou com a 9ª Cavalgada de Crathéus, fico torcendo que a nova tradição criada pelo Dr. Wagner ajude a resgatar essas belas histórias dos rincões do nosso sertão.

Raimundo Cândido

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