sexta-feira, 6 de julho de 2018

Casa de vó, fogão de lenha


              Num canto já enegrecido da acolhedora cozinha, o fogão de lenha era estrela. A impressão era a de que o dia só começava mesmo depois que minha avó empurrava-lhe alguns paus de lenha seca boca adentro, fazia um amontoado de gravetos embebidos em querosene e... zás! em pouco tempo o fogo surgia, enchendo, num primeiro momento, a cozinha com toda aquela fumaça, depois a casa inteira de vida. Alimento é vida.
             Não demoraria muito, sob o vigor do abano de palha, as chamas, bailando em cores vibrantes e calor intenso virariam brasas. Ainda podia se ver por algum tempo a fumaça, agora mais dissimulada. Permanecia por ali apenas denunciada pelas brechas do telhado que deixavam passar pontos de luz do sol. Vindas do teto em direção ao chão, as frestas de sol se acinzentavam, um sinal claro do respirar das chamas.
             Fogo feito, lenha estalando, chapa quente, hora das panelas. Buscava dentre aquelas emborcadas sobre o girau do lado de fora da janela. Fosse dia de galinha, escolheria a maior. O ritual era o mesmo, no fundo uma demão de cinza de borralho misturada a sabão. Vovó dizia que assim elas não empretejavam quando em contato com o fogo. Sabedoria popular. Pra mim, uma criança de pouco mais de oito anos, uma mágica.
              Eram panelas vividas, assenhoradas, cheias de cicatrizes, tampas tortas, mas incrivelmente brilhantes, areadas à exaustão. Sinal de zelo. Mesmo na simplicidade, toda dona de casa que se prezasse tinha sua bateria de panelas impecável e um conjunto de copos de alumínio enfileirados no banco de potes à espera das visitas. O de “aseia” era sempre o que tibungava em busca da água fresquinha que o pote abrigava. Mas esta é outra história.
             Tudo pronto... hora do velho fogão de lenha trabalhar. O alho pisado com a pimenta do reino, a verdura fresquinha colhida Do canteiro que se avistava no terreiro, o borbulhar do torresmo pururucando na gordura, o feijão na primeira água de cozimento, o ovo estralando na frigideira, o café coado no saco de pano, o leite que fervia e formava um véu ao transbordar, a pipoca do milho-gordura colhido na última safra, o mingau de puba... tantos cheiros, tantos sabores, fosse o que fosse, tudo convidativo, inebriante, feito ali, sob as rústicas “trempes” do fogão. Sabores nobres, sabores de casa da avó.
               Comida feita, bocas saciadas, todos descansam e o fogão também. Lá fora, no alpendre, uma rodada de café. O ruge-ruge se mudou pra lá. A cozinha, enfim, celebra a solidão. Não se ouve passos, tilintar de pratos, bater de colheres, vozes altas intercaladas com o mastigar prazeroso do almoço. Todos se foram deixando apenas o cheiro encorpado do café. Nenhum sinal de vida ou quase isso. Sob o fogão de lenha já limpinho, asseado, ronrona o bichano da casa à procura de um lugar quentinho. Assim finda o labor da estrela da cozinha, das chamas ao chamego.
              Li, certa vez, um texto de Rubem Alves que dizia: “O fogão de lenha é lugar de saudade. Porque os fogões de lenha, eles mesmos, são fantasmas de um mundo que não mais existe.” Verdade. Infelizmente, verdade.
              Para minha vovó, de quem guardo lembranças, uma delas, a que escrevi agora.
                Lidiana Imani
(Escritora  crateuense, Professora de Português do Colégio Vitória)

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