quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Ofícios e banhos no Poty


.........Ainda jorram impetuosas, aquelas águas barrentas de minha infância. Corre sobre minha pele um Poty translúcido e equídeo escramuçando entre rochas, com crinas ao vento nas tardes bucólicas. Creio que me tornei rio para fluir livremente desde o primeiro e delirante mergulho.
.......Era como sentir a quinta sinfonia beethoveniana que ia aumentando em vigor, suas notas aquosamente sonoras à medida que nos afoitávamos na sua nervosa correnteza. Para mim só houve segurança enquanto não aprendi a nadar. O pé ficava ancorado ao chão pelo medo de enfrentar a perigosa aventura das corredeiras da “Goela”. Sequer tinha aprendido a boiar como um cãozinho sobre uma porção liquescida e tranquila e já me achava destemido, com ânimo para enfrentar as águas que corriam céleres levando com selvageria a vida e a morte no percurso de rio que sabe ser fiel ao seu destino marítimo. O mar seria bem menor se faltasse uma só gota do Poty.
.........Posso dizer, com imensa satisfação e uma deliciosa nostalgia, que meus banhos no rio da caatinga brejeira foram inesquecíveis. Incomum era esperar pelo desfecho de janeiro, quando se firmam as temporadas de chuvas, para sabermos se o nosso amigo fluvial serpentearia ao nosso encontro repleto de algazarras, de prazerosos momentos em suas jubilosas margens.
........O mais importante daquele entardecer impetuoso, em meio ao caos da multidão irrequieta e dos riscos do volumoso rio com suas águas revoltas e turvas, a rodopiar os sonhos e os medos para a profundeza lamacenta de seu bojo, era o assombro que se estampara em nosso olhar, ao ver sendo arrastado de arrojo um atônito e pesado boi com seus olhos marejando um adeus como se um tronco lenhoso fosse, um troço qualquer. A felicidade também havia e rolava de nossos corações fluvio-sanguíneos por pressentirmos que a infância se salvaria nas brincadeiras salutares na beira do rio, pois o melhor antídoto para salvaguardar a meninice foi e sempre será, brincar.
.........Mas, às vezes, o Poty não estava para brincadeiras. Chegava como um cão raivoso para tomar posse de seu lugar. E lá estavam nossos familiares com os cacarecos na cabeça procurando mudança. Quando vinha nos seduzir em nossos quintais, víamos apreensão estampada nos olhos por mais uma ameaça de desocupação compulsória do que não era nosso, e esperávamos mais uma ordem de despejo. Ainda assim, nunca faltou motivo para nossos banhos.
........Vez por outra o Poty tem perda parcial de memória e esquece-se de voltar. Mas suas amnésias temporárias nunca prejudicaram a imersão fluente de nossas tardes. Ficavam os poços como que nos aguardando para substituí-lo. O Poço da Roça tinha um ar de mistério e de lenda no seu grande anfiteatro aquático de alta mata ciliar. Era nossa piscina olímpica, onde exercitávamos natação e a expectativa de sermos felizes sem ter consciência disso. Ali desenvolvíamos um particular amadurecimento quando a ingenuidade sucumbia à admiração de espiar as lavadeiras tais quais libélulas ensaboando roupas com uma naturalidade original de seus corpos seminus em linhas sinuosas, como as curvas do rio, para nosso deleite.
.........Lá, onde há a pedra da Mãe d’água, aprende-se a nadar. Tínhamos que passar por essa prova de coragem. Era nossa iniciação, para o conhecimento de coisas misteriosas e difíceis. Um enfrentamento ao submundo da escuridão para adquirir um oficio ou arte, nadar. Arrisquei por tentativas inúmeras, de elevado desespero, chegando ao ponto de sentir a mão fria e escamosa da Iara me puxando para seu reino de medo e lama, mas uma força mística dos céus ou da terra, ou um travesso duende, não sei, me fez voltar ao mundo dos vivos.
..........O Poty, como velho fênix que constantemente renasce de si ondulando como cobra em fluxo sonoro, um dia fixou um povoamento no mesmo espaço de terra onde outrora uma tribo rústica de nome Karatis da cor do mufumbo, ululava aos céus em danças de caça e pesca. O rio que avançava impetuoso, rouco, se contorcia, pulava e ria com sua graça meninil, ficou para trás.
.........Hoje, sentado à margem de seu doloroso curso, não vejo o sangue puro e plasmático, que nutria com hemácias e seiva o chão ávido e sedento. Não sinto o rio que vertia um sangue como no Nilo bíblico, cheiro forte e venoso quando eu o bebia... Hoje, à margem do Poty, com uma nostalgia profunda, eu me sentei e chorei... Sinto que ele escorreu pelas minhas mãos.
Raimundo Candido

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