quarta-feira, 20 de abril de 2011

CULPA DE VAQUEIRO

Elias de França


Há um trato de risco e um hiato de sina entre o homem e seu vaqueiro, o vaqueiro e seu cavalo. O homem confia ao vaqueiro seu gado e o paga com sorte. O vaqueiro confia ao cavalo o alcance da rês e o paga com a fama. Pelo gado e pelo homem morre o vaqueiro, e pelo vaqueiro morre o cavalo. Mas não havendo bezerros nem queda de boi, não há de haver nem sorte nem fama. Não havendo o homem não há vaqueiro, e sem vaqueiro, não há o cavalo.
O crime era daqueles sem perdão, pelos séculos sem fim. Valia o castigo de quem mata um santo em cujo túmulo os enfermos acenderiam velas, depositariam oferendas e apostariam promessas e milagres, gerações a fio. E como na alusão a Joana d’Arc, tornar-se-ia hábito de qualquer um responder, quando alguém lhe quisesse atribuir missões penosas: não, eu não matei o Doutor Olavo.
Então o vaqueiro, que já não havia, era feito um bicho ferido, vagando na caatinga, andando a esmo, dormindo ao relento, escondendo-se do mundo e de si mesmo. Se comia ou bebia, era graças aos préstimos da esposa e filhos, que lhe levavam uma marmita e uma cabaça d’água, quando o podiam encontrar. Parecia um corpo sem alma, cão que, por querer, ficou sem dono.
Todo o tempo passado e as pessoas com quem vivera apagaram-se. Restou-lhe aquele pequeno lapso de instantes, imensurável em segundos, sem começo nem fim, quando, depois de ir à casa do patrão, na cidade, trocara a montaria pelo banco do passageiro do automóvel que levaria os dois à casa da propriedade vizinha. Donde ouviu, e obedeceu, como bom vaqueiro, a ordem do patrão para esperar no carro. Donde ouviu as vozes ferozes dos vizinhos gritarem ódio e tiranias. Donde covardemente viu, encostado nos paus da cancela do pátio, o pai e os dois filhos, armados de facas, desferindo o ataque ao doutor, que debalde tentava alcançar o veículo andando de costas, dando a própria carne dos braços como defesa, até cair desfalecido. Donde embrenhou-se em fuga, pelo matagal, até perder-se, para nunca mais se achar.
Há, sim, um trato de risco e um hiato de sina entre o homem e o vaqueiro. O homem confia ao vaqueiro seu gado... Pelo homem morre o vaqueiro... Não há de haver sorte nem fama... Donde covardemente viu, encostado nos paus da cancela... até cair desfalecido... Não havendo o homem não há vaqueiro... os paus da cancela... cipó... não há cipós que possa prender cada instante daquele lapso, imensurável em segundos, sem começo nem fim...
E na manhã do dia em que completava um mês que o mundo se acabara, a esposa, de marmita e cabaça d’água em mãos, procura desesperada o vaqueiro, que já não havia, até encontrá-lo pendurado no alto do galho de um juazeiro, enforcado com cipós de taipa. Debaixo do cadáver, o cavalo, que também não havia, babando relinchos de lamúrias, escavando aflito, chorando o final de uma historia de vaqueiro e gado.

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