segunda-feira, 11 de julho de 2011


                                                                  
                                           Poço da Roça
            Tínhamos o domingo como uma hora de recreio. Um gostoso intervalo entre as fastiosas horas de uma semana sem fim.  Impacientemente aguardávamos aquele momento em que mal começava o dia, no cruzamento da Rua Frei Vidal com a Padre Juvêncio, quando íamos chegando um a um. Nunca era o primeiro a chegar, fato que me dá a impressão que aí começou o horrível hábito de descumprir as minhas futuras horas de precisão, embora morasse ali mesmo, naquele subscrito endereço. Às vezes o Bitonho, outras o Renato, já estava por lá nos aguardando. Era um grupo bem unido, muito compacto de cinco ou seis meninos. O Flávio tinha um Q de adulto, com ares de um amadurecimento antecipado, ainda que não passasse disso, mas comandava a partida marchando em frente, sem uma ordem expressa, para que o seguíssemos.
            Já sabia de memória quantos passos teríamos que dar do final da rua até chegar a nossa magnífica piscina olímpica. Um imenso poço que nunca secava. Um espelho imperecível com sua lodosa água verde e por isso mesmo eterno em nossas mentes. A longa marcha começava com uma selvagem alegria infantil que borbotava de nossas almas, num contentamento que só aparece entre as crianças que além de companheiras, se sentem iguais. Era uma longa trilha por entre marmeleiro e mufumbos, sempre margeando o leito seco do Poti que nos mostrava sua calha poeirenta e entorpecida, num estado letárgico para suportar sua longa espera até chegar uma nova quadra invernosa.
            Os raios de sol desdobravam uma paisagem minuciosa para o nosso entusiasmado olhar, que ia captando tudo como uma avidez impressionante. Um calango colorido disparava em fuga por entre os gravetos do chão, produzindo um gostoso chiado nas folhas secas. O Bem-te-vi recebia-nos com sua algazarra de boas vindas. Era uma catingueira agreste que se mostrava viva e exuberante na sua difícil maneira de subsistir. Nada passava despercebido aos nossos avivados sentidos, até um louva-a-deus em seu equilibrado voo de moderna aeronave ou enquanto pousava num galho, aparentando uma pessoa em serena oração, nos deixava em estado de alumbramento. Os pássaros cantavam, e nós tentávamos imitá-los num desarranjado assovio àquele milagroso som do bico de um golinha, de um estrelinha ou do galo campina com todo o esplendor de uma Flauta de Pan.
            De longe avistávamos o imenso poço de água doce e logo a adrenalina aumentava nosso anseio só pela sua simples presença. Ali se manifestava uma magia e um mistério que éramos incapazes de compreender. Percebíamos que a sede da terra em sorver toda água do mundo, no Poço da Roça estava saciada. Por isso, aquela imensidão ficava em paz. Nem o sequioso chão o sorvia, nem o inclemente sol o devorava, feito vapores para suas dispersas nuvens brancas.
            Os bancos de areias, ao lado das pedras baixas, se estendiam como lençóis e nos convidavam ao banho. Infinitos segredos foram desvendados sob as imensas copas das oiticicas, do imbuzeiro ou embaixo de um grande juazeiro que nos oferecia sua abrandante sombra enquanto as singelas lavadeiras nos ofertavam esplendidas visões que enrubesciam nossas faces.
            Se a mais autêntica forma de felicidade é ser feliz sem motivo, éramos genuinamente afortunados na embriaguez da existência, em comunhão com àquela hora que conservei num infinito antes de mergulhar na solidão da minha realidade futura. As árvores confabulavam com os irrequietos duendes do ar, as rãs bisbilhotavam na água enquanto um céu esplendorosamente azul aquiescia o nosso mergulhar e abrandava o medo que sentíamos de encontrar os assombrosos monstros que sempre habitam a escuridão das nossas águas turvas. Nadávamos de uma margem a outra até gastar o fôlego, com a seriedade das competições olímpicas.  Havia muitas brincadeiras, mas a de que mais apreciava, era lançar o pitel, pedrinhas de forma chata para saltar sobre as águas.
            Arremessávamos na horizontal, e ela corria vencendo a cruel gravidade até perder o fôlego e mergulhar. Discutíamos: foi cinco! Não, foi seis! Foi, foi dez... Lembro-me bem, era minha vez e lancei o pitel que se suspendeu no ar bateu resoluto na água e voltou como um pássaro para o ar, uma, duas, três... dez... vinte ... e ainda assim está, a quicar, por lá!

Raimundo Candido

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