segunda-feira, 2 de abril de 2012

                                E A FRANÇA DEPORTARIA PICASSO?

Há algumas semanas li um livro sobre um dos momentos mais interessantes do século XX: as aventuras da arte moderna de 1900 a 1930 em Paris. Nós conhecemos muito ou pouco desse momento (quem assistiu ao filme “Meia-noite em Paris” de Woody Allen sabe do fascínio que esse período, especialmente os anos 20, exerce sobre nós): quem não queria beber e conversar com Modigliani, Picasso, Apollinaire, Hemingway, Soutine, enquanto se explorava os bares de Montmartre e  Montparnasse? Muito da aura poética de Paris surgiu desse período. Paris do surrealismo, da arte abstrata, Paris dos bares, cabarets e cafés, das galerias, Paris berço da boemia. Mas uma coisa é interessante de se observar: a maior parte desses artistas que ajudaram a construir o mito de Paris como destino inultrapassável das artes eram estrangeiros.
O autor desse livro tem uma tese sobre o que aconteceria com esses artistas estrangeiros na Paris atual: “Eles escolheram viver em Paris, cidade fraternal, generosa, que soube oferecer a liberdade a esses povos vindos de fora. Hoje, Picasso, Apollinaire, Modigliani, Cendrars e Soutine não estariam mais aqui. Eles teriam sido rejeitados para longe do Sena. O espanhol por uso de drogas, o ítalo-polonês por dissimulação, o italiano por escândalo na via pública, o suíço por roubos na estalagem, o russo por miséria crônica e mendicância disfarçável à duras penas”. Essa tese parece ser muito dura: Paris (e, claro, a França) se tornou rígida demais e, sobretudo, intolerante com os estrangeiros. Mas isso é o que nos dizem os debates políticos daqui, enormemente dominados pelo tema da imigração. Virulências que não partem apenas da extrema-direita xenófoba do Front National, mas escondidas na plataforma do Partido Socialista.
As festas épicas organizadas em Paris pelos artistas do começo do século seriam hoje consideradas casos de polícia. Quando os boêmios de Montmartre declararam sua independência, quando os artistas em peso se fantasiaram com as roupas do exército francês da época da comuna de Paris e desfilaram pelas ruas levando garrafas de vinho (o objetivo era fazer uma barricada no apartamento que Poulbot alugava para impedir que o proprietário colocasse o pobre pintor na rua), eles não sofreram repressão. Mas hoje as coisas seriam radicalmente diferentes: declarar uma parte de Paris independente, mesmo que num mero ato estético de distinguir esse bairro de artistas dos outros da burguesia afetada, seria considerado um insulto à Pátria, talvez até uma questão de segurança nacional.
            (Em sentido horário, Fitzgerald, Gertrude Stein, Hemingway e Picasso)
Esses artistas estrangeiros não teriam mais a liberdade dessa época: em primeiro lugar, eles não poderiam mais vir morar em Paris sem que antes especificassem qual o objetivo de sua estadia e por quanto tempo permaneceriam. E deles seriam exigidas a comprovação de condições financeiras, um endereço fixo (coisa que quase nenhum deles tinham) e outras coisas que permitissem que o estado os pudesse rastrear mais facilmente. Vir à Paris para escrever e pintar? Só através das cada vez mais parcas concessões de bolsas de estudo. E mesmo se conseguissem, que escrevessem à la Beat generation, rapidamente, pois o tempo é curto. Se quisessem festejar a vida, que o fizessem com menos barulho possível, pois em Paris os decibéis são rigorosamente controlados. Morar em Montmartre e Montparnasse? Esqueça, esses são dois dos bairros mais caros, com o valor do aluguel de um ateliê (leia-se kitnet) ao redor de 1000 euros. Muito provavelmente esses artistas estariam morando nas periferias mais distantes, onde os estrangeiros pobres são engavetados (e onde a vida noturna é praticamente inexistente). Morar em pensões, pagas quando podiam e das maneiras mais inusitadas? Sinto muito, elas não existem mais: tornaram-se hotéis. Fazer bicos para comprar o vinho diário e ocasionalmente uma refeição quente, como a maior parte deles fazia? Só se tiverem a sorte de ter impresso no visto uma pequena autorização de trabalho. Vender as pinturas nas ruas, como fazia Utrillo nos momentos em que a fome apertava? Dirija-se à prefeitura para conseguir a autorização (e comprove que você não está na França ilegalmente, o que era o caso do Utrillo).

(Pintura de Utrillo “Rue Custine a Montmartre)
São tantas as diferenças entre a França daquela época e a de hoje… Talvez alguém pudesse dizer que essa França do começo do século XX é precisamente isso, uma França de outros tempos. Mas o fato é que ela mudou para pior. E as coisas estarão cada vez mais sombrias num futuro muito próximo: se hoje o único caminho para algum escritor ou artista vir à Paris é através de bolsas de estudo, em breve essa porta se tornará uma janela. A circular Guéant, idealizada por um ministro abertamente xenófobo (que declarou há alguns meses que a civilização ocidental é superior às outras), vai reduzir drasticamente a entrada de estrangeiros que pretendam estudar na França. A desculpa: a França não quer contribuir para a pilhagem de cérebros estrangeiros.
As pesquisas eleitorais nesse mês que antecede as eleições presidenciais mostram que a direita vencerá. E, mais assustador ainda, a extrema-direita receberá milhões de votos. A França de hoje é mais intolerante, fechada. E o governo já declarou sua intenção de sair do tratado de livre-circulação da Europa. Esses artistas de países vizinhos seriam barrados ou deportados, e os de países distantes receberiam apenas o visto de turistas (se mostrassem condições financeiras para tal). Imaginam Picasso deportado?


                                                               Yuri Falcão

Raimundo Candido disse...



Que pena! Aquela glamourosa e poética Paris não mais existe, e que santa ingenuidade a minha! Uma Europa inteira morre aos pouco, como um ovo podre, corroída pelo medo do mundo e implode sobre com sua desumana soberba. Obrigado Yuri, por nos mandar notícias deste velho mundo cada vez mais antiquado e mais distante.
Raimundo Candido

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