quarta-feira, 4 de abril de 2012


O FELINO
 De manhã, antes do sol despontar no horizonte,  Irisbela saiu do sono, levantou-se,desarmou a rede de fios brancos entrelaçados, a pouca distância das outras, na oca  ,recolheu-a e se encaminhou para o rio. Ao tomar banho, imergindo com vagar o corpo na água,volveu à aldeia,comeu peixe moqueado com beiju, de cócoras, e saiu.
Irisbela deixou a taba, habitação do pai Pajaci, da mãe Liraquim, e caminhou para o interno da mata, endereçando-se à serra, lugar constantemente úmido, com permanente estação fria. Fora coletar frutos, destinados a ela, à mãe, ao pai, aos irmãos, aos primos e às primas.
Irisbela coletou bastante frutas, arrumou-as numa espécie de cesto, decidiu regressou à aldeia. Já trilhava o caminho de retorno, olhando para frente e para os lados, quando avistou um filhote de jaguar, gemendo, estendido no chão coberto de folhas secas, ao  lado de uma árvore. Parou, saiu da sua rota, aproximou-se dele, percebeu que estava ferido. Havia sofrido um tiro na pata direita, perdia muito sangue.
Ao lado da cria, a poucos metros, achava-se a mãe, onça pintada, espichada no solo da floresta, sem vida. Vários tiros, vindos  de diversas direções, haviam atravessado o pescoço do animal que tombou,morta. Irisbela inferiu que foram os caçadores brancos, filhos de terras estrangeiras, os matadores da fera. Mataram-na para se livrarem do ataque mortífero. Praticaram um grande mal. Deixaram o filhote ferido, privado de mãe, não sobreviverá na floresta. Será uma presa indefesa na mata referta depredadores.
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Irisbela, filha de Pajaci, condoeu-se do felídeo, filho da onça pintada. Não era bruta, era humana, tinha sentimentos. Não podia abandoná-lo. Se o deixasse ali, só e desprotegido, não escaparia à sanha dos predadores da fauna. Logo,logo, faria parte da dieta deles. Resolveu salvá-lo.
A silvícola pôs o cesto com frutos no chão, tomou o filhote nos braços, mimou-o como se fosse um filho. Acariciou-o, beijou-o, com lágrimas caindo dos olhos. Julgou-o bonito e imaginou que, se fosse possível, queria gerar num venturoso dia, após amar seu esposo póstero, um rebento tão formoso quanto o felino órfão. Depois olhou atenta para todos os lados da flora e, percebendo que ninguém a via, rumou para um lugar seguro.
Dirigiu-se à gruta onde costumava brincar com crianças aborígines, suas amigas, filhas da aldeia. Entrou, apanhou todas as pedras dispersas, depositou-as num canto. Fez, no fundo da gruta, uma cama de folhas e varas, nela depositou o felídeo. Limpou seu pelo mosqueado, manchado de sangue, tratou-lhe os ferimentos, deu-lhe comida para recuperar-se e crescer robusto.
Feito isto, tornou ao cesto de frutos, ergueu-o, depositou-o na cabeça, endereçou-se à aldeia. Chegou com atraso demais de uma hora. Não contou à mãe, ao pai, às amigas, sobre o filhote encontrado ferido. Receava que eles, se informados, fossem à gruta para maltratá-lo ou matá-lo, sem um motivo capital. Era um segredo, e só ela, o céu, a terra e os espíritos, seus protetores, sabiam.
Todo dia, pela manhã, Irisbela despertava antes dos outros autóctones, dirigia-se aos animais domésticos que alimentavam os filhos, fazia a ordenha, recolhia o leite  numa cuia, levava-o para o felino. Abria-lhe a bocarra, introduzia nela o leite através de um cipó oco que servia de canudo. O animal sugava o cipó com satisfação. Depois, ao chegar à idade de rejeitar o leite, ela levava carne para ele, patas, vísceras  e cabeças de caças abatidas pelos aborígines. Bem alimentada, a fera cresceu saudável, fez-se vigorosa, pronta para enfrentar os perigos postos pela natureza.
Ao fazer-se adulto, Irisbela descerrou a bocada gruta, tirando a pedra para soltá-lo. Ele havia ficado enorme e precisava de mais carne do que a encontrada ao alcance da boca. A selvagem compreendeu que não podia suprir as necessidades do animal crescido; resolveu libertá-lo. Livre, o felídeo embrenhou na flora, procurando a sobrevivência  nos pontos onde houvesse as maiores quantidades de mamíferos grandes e gordos.
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O jaguar adentrou a mata, sabendo que ele e sua dona, irisbela, eram amigos para sempre. Devia a sua vida à generosidade da silvícola e prometeu, a si mesmo, defendê-la do perigo em todo o tempo.

Raimundo Candido disse...
Primeiro capítulo de um dos quatro romances inéditos do escritor Gilberto Pereira Santos (Professor do Ceja-Crateús). Este é num estilo alencariano, os outros romances são machadianos puros, confirmando o que tenho dito: - Aqui é um grande celeiro. E aí de quem duvidar!

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