domingo, 2 de dezembro de 2012

Sobre calçada

Rua D. Pedro II / Crateús
Há tempos isso vem me incomodando. Pensava a respeito, discutia com amigos, mas sempre me faltou coragem em dividir com o papel – primeiro porque nunca sei como dizer as coisas ao papel, segundo porque ainda não tinha parado para pensar direitinho, elaborar. Agora que pensei e elaborei, vou tentar, feito criança, dizer o que sinto – me refiro a criança pela simplicidade da conversa – e com a ansiedade de dizer de uma vez tudo que sinto, como criança mesmo, cheia de atropelos, idas e voltas. 

O assunto é calçada. Sim, calçada, aquele pedaço de chão que se estende para fora das nossas casas, uma das partes mais coletivas do ser humano. Ela é minha, mas todos têm direito sobre ela, acho isso massa, legal, show de bola – e só não cito mais gírias para não irritar os sucintos. 

Lembro que na minha infância as calçadas serviam como parques de diversão onde jogávamos castanha e bola, trocávamos figurinhas, pulávamos elástico e macaca, e quando algum transeunte se aproximava, com todo respeito dávamos licença para não ouvir reclamação. Às vezes havia brigas porque nas brincadeiras sempre há os trapaceiros que subiam a pedra de casa na macaca ou que surrupiavam uma figurinha, aí era carreira grande e quizumba feia, depois era ouvir os gritos das mães pra sair da rua e voltar pra calçada. 

Outra função da calçada era abrigar as cadeiras nos fins de tarde, boca da noite. Os pais e mães se reuniam para contar as noticias do dia, saber da vida do outro, um fuxico, uma palavra sagrada, um acerto de conta, uns que passavam e paravam para uma prosa rápida... Aqui e acolá saia uma história de visagem, depois era se recolher para assistir o jornal nacional. Para nós, já maiores, tinha antes que passar o anel, cair no poço e espreitar o casal que escolhia uma calçada menos iluminada para os beijos mais quentes e abraços mais apertados. Depois era ouvir grito de mãe, já era hora de entrar. 

No centro da cidade, as calçadas eram verdadeiros shoping's a céu aberto, uma verdadeira festa do comércio. Os olhos se iluminavam diante de tantas bugingangas, roupas, brinquedos, comidas, óculos escuros e relógios de pulso – os meus fascínios. As calçadas eram apinhadas, impossível passar sem parar para olhar, impossível não roçar o ombro. Bom mesmo era o cheiro de suor, o grito dos vendedores, o calor do sol. Era tudo tão quente e ofuscante que pensava estar em um filme, onde eu, personagem principal, via e documentava tudo. E era a calçada uma feira pública, coletiva. 

Hoje as calçadas, em todos os lugares que já fui e que observei, são particulares, são extensões de bares e estacionamentos, uma feiura só, um incômodo danado. Se fosse festa, dizia nada não, mas é tão particular e inconveniente que tenho inclusive vergonha [porque é como se eu, pedestre, estivesse atrapalhando] de passar e me arrisco disputando a rua com carros, motos e bicicletas. Eu acho tudo de tão mal gosto! 

Não quero aqui falar de um tempo que foi bom e outro que não é. Compreendo que cada geração, cada década tem seus costumes, seu jeito de sentir, de viver. Por exemplo, hoje já não temos mais os camelôs nas ruas, eles tem um lugar próprio, o que é bom pra eles. As crianças quase já não brincam mais nas calçadas porque tem games à vontade em casa, o que é ruim pra elas, pois não têm aquele contato com gente, com terra, que é bom. Já se tem medo de ficar a noite nas calçadas porque existem assaltos, nem tem histórias porque já tem a novela, o que é ruim porque pouco nos conhecemos e sabemos da vida um do outro. Aqui e ali ainda se avista um casal sob alguma árvore, sobre alguma calçada, o que é bom, mas já pensamos no perigo que correm, o que é ruim porque vivemos em estado de medo. Mas não poder andar sobre esta faixa de terra que é coletiva porque donos de bares e veículos não permitem muito me desagrada e acho ruim, porque falta coletividade, porque se sobrepõe o desejo de um sobre o direito da maioria. 

E é isso. 

Karla Gomes

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