quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Troféu


 
             Ao caminhar pela belíssima Avenida Treze de Maio – antiga e poética Flor do Prado para quem não conhece a história de Fortaleza – saindo da Estação do Metrô (a funcionar brevemente!) no cruzamento da Rua Carapinima e subindo rumo a Igreja de Fátima, nos deslumbramos com uns arcaicos palacetes, réplicas europeias que pertenceram ao antigo Patriarca, Comerciante e Banqueiro sobralense José Gentil, fundador de um império e que deu nome ao local: Gentilândia, hoje Benfica.
            A residência principal do sitio, um magnífico solar, foi renovado e transformado na sede da Reitoria da Universidade Federal do Ceará. Uma gravura no muro daquele estabelecimento, subitamente, nos chama atenção. Num grafite gigantesco está o corpo nu de uma mulher com as veias expostas, representando aqueles que sofreram torturas e morte pela famigerada ditadura militar brasileira. Automaticamente pronunciamos o nome de muita gente, como: Frei Tito, Lamarca, Molina, Vladimir Herzog entre tantos outros.  O título do quadro é o lema positivista da bandeira do Brasil, invertido, como se fosse uma imagem no espelho. Inconscientemente veio-me, à memória, uma grave canção ao contemplar aquele simbólico quadro: Vem, vamos embora, que esperar não é saber...  
             Existe outro imenso painel em óleo sobre acrílico com o título “A verdade ainda que tardia” dependurado permanentemente nos corredores da Câmara dos Deputados, em Brasília, com imagens chocantes em cores fortes, das torturas praticadas pelo Governo Militar: uma mulher agoniza dependurada no pau-de-arara, outra se esvai em sangue pela vagina, um homem sendo afogado num pequeno balde, outro na cadeira do dragão sofrendo choques elétrico no pênis, enquanto um torturador aperta os parafusos da “coroa de cristo” sobre a cabeça de um cidadão e gravado no topo da obra está o verso de um grito de liberdade “Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura.. se é verdade tanto horror perante os céus?”. O artista plástico Alifas Andreato, doou a obra para o acervo da Câmara.
            A presidente Dilma Rousseff – que nos anos de ferro foi torturada e indenizada com 30 mil reais pelo governo de Minas Gerais – aprovou uma lei instituindo a Comissão Nacional da Verdade, que visa investigar as violações dos direitos humanos ocorridos entre 1946 e 1988, no Brasil. Os militares brasileiros, além de assinarem um protesto contra a Comissão, prepararam uma provocação, descumprindo uma ordem presidencial e comemoraram os 48 anos do golpe militar, combatido pela guerrilheira Dilma. De quebra, o polêmico cantor romântico Agnaldo Timóteo, defendeu a ditadura brasileira na Câmara Municipal de São Paulo, afirmando que durante o governo militar nunca houve corrupção, desvios de recursos públicos, lavagens de dinheiro, esquemas de influências ou mensalões, isso numa sessão da Comissão da Verdade e só faltou pedir que se implantassem o AI 6 sobre nossas cabeças, o que me trás pesadas recordações...
             A chegada do primeiro bispo na cidade, em 64, quando os militares já se dispunham a caçar comunistas e subversivos em cada esquina e não foi a festa que as elites locais esperavam, pois se decepcionaram ao ver um Dom Fragoso rejeitar as honrarias preparadas para ele, e se dispôs contente no meio de um humilde povo. Indispôs-se, mesmo, foi com uma Igreja de orientação ideológica conservadora ao optar pelos sem voz e sem vez.  E quando recusou o convite do 4º BEC para celebrar a missa em “Ação de Graças” pelo primeiro ano do golpe de 31 de Março, surgiram os primeiros conflitos.  Numa entrevista a um jornal falou da libertação da America Latina do jugo de todas as opressões!  E logo se ouviu falar em DOPS, Departamento de Ordem e Polícia social, em Crateús a implantar um clima de medo: o medo da policia, o medo do exército, medo do vizinho delator, medo da própria sombra!
            Pessoas “subversivas” eram vigiadas, reuniões reveladas, ações difamadas, estimulavam-se as delações e infiltrações em repartições, colégios, igrejas, comércios e nas casas. Quando as pesadas botas sentiram vontade de esmagar, triturar tudo por aqui, subitamente veio um amparo e uma solidariedade imensamente protetora das igrejas, do Brasil e do mundo.
           O Pe. Geraldinho foi detido por 11 dias no Recife, pois os militares queriam saber tudo sobre os focos de agitação e subversão em Crateús, comando pelo famoso “agitador comunista” Dom Antonio Batista Fragoso.  Depois daquele março de 64 o ambiente começou a ficar pesado, era tempo de meio silêncio, tempo de boca gelada e murmúrio, de palavras indiretas, de avisos nas esquinas. Tempo de cinco sentidos num só, pois o espião jantava conosco, como disse o poeta Ferreira Gullar em sua rota de fuga.
           Em Crateús, o professor Luiz Bezerra passa um telegrama aos Diários e Rádios Associados, avisando que o Vice-prefeito José Bezerra de Melo e alguns vereadores foram cassados, por participarem de movimentos subversivos. No ano seguinte também é cassado o mandato do prefeito Municipal Dr. Olavo de Araujo Cardoso.
          Um grupo de 16 pessoas, corajosos heróis crateuenses, manifestam-se publicamente contra o regime militar e são presos, entre eles o socialista Noberto Ferreira, o Sr. Ferreirinha, que em breve entraria em aflição pela vida do filho, o estudante de medicina João de Paula, que participaria do XXX Congresso da UNE em Ibiúna, SP. Quando a moçada ouviu aquele ratatatá ratatatá para todo lado, perceberam que o encontro havia chegado ao fim. Entre centenas e centenas de estudantes, com cartazes de Che Guevara e livros com o título “Guerra - Guerrilha – Chê”, a polícia notou logo a presença de José Dirceu.  João de Paula, o corajoso crateuense, logo teve que se evadir para o Chile do Marxista Salvador Allende que seria então derrubado pelo capacho do dedo sujo americano e um dos piores ditadores da humanidade, Augusto Pinochet. Ele exalava morte ao respirar, diziam. A fuga, foi digna dos estúdios cinematográficos de Hollywood, tramaram assim: a irmã de Ruth, a namorada do João, com os disfarces na bolsa a tiracolo entra na pensão que era espreitada por vivos olhos de lince. Não demora muito e saem. As sorridentes freiras abençoam a todos, por ali, enquanto se dirigem à porta. O chuveiro ligado afirmava que João de Paula ainda aguardava, tremendo e hesitante, num quanto de aluguel.  
            Em Crateús vivia-se sob o ferrete do medo, que deixava marcas doloridas como aquelas feitas em gados tangidos para o curral. A Rádio Educadora de Crateús tinha mais ouvidos nas paredes que os reais ouvintes espalhados pelo imenso sertão. O programa da Diocese que informava sobre a semana das catequeses, as atividades da Conferência nacional dos Bispos e leituras do Evangelho, era de responsabilidade da Professora Luzia Neide Menezes Teixeira e do Senhor Manoel Messias Coriolano, eles elaboravam os textos que seriam lidos pelo jovem Flávio Machado no programa A Voz da Paróquia. Antes, tinha que levar o script para uma censura previa, no 4º BEC.
            – Por que você escolheu essa notícia, professora? Era a pergunta de sempre dos sensores e um dia a indagação foi mais específica;
            – Por que você trabalha para esse Bispo Comunista, Professora? Ela sempre se saía bem, nas respostas.
           – Sou filha de uma viúva e preciso trabalhar!
           Um dia, chega um assustador aviso aos ouvido da viúva Dona Delite: – O Monsenhor Bonfim mandou dizer que a Luzia Neide vai ser presa. Se continuar como estar, ela vai ser torturada e a qualquer hora!
            Foi a gota d’água. Chama a filha e vai logo determinando, numa ordem dura: – Escute, minha filha, eu já aluguei uma casa na Rua Senador Alencar, em Fortaleza. Você vai trabalhar e estudar agora é por lá! E pronto!
            Se em Crateús a ditadura implicou com a professora, em Fortaleza o despotismo embaraçou-se mesmo foi com o Manoel Nene Martins Coriolano, seu esposo. Nene aprendera a arte da tipografia e os segredos da vida com o grande Professor Luiz Bezerra. Não foi difícil arranjar emprego em fortaleza. Desde a invenção da imprensa que a arte do tipografo é primordial ao mundo, mas na escura época de uma ditadura é um cidadão muito visado: Panfletos! 
           Bem que ele tentara entrar para o partidão, mas lhe explicaram qu não poderia ser aceito: – Seu Manoel, não podemos lhe admitir, o senhor acredita em Deus, gosta das músicas do Roberto Carlos e ainda torce pelo Botafogo! Logo você não tem credenciais!
           Ter alguns amigos do peito, esquerdistas de carteirinhas, em época de ditadura é um sério perigo!
           Quando a intimação da Polícia Federal chegou, tentaram explicar por que ele não poderia comparecer naquele horário, por motivo de trabalho. Pelo sorriso sarcástico no rosto do emissário, perceberam a seriedade da coisa:
           – Ah, senhora, ele vai sim... Não se preocupe, ele estará lá, com toda certeza!
           Enquanto Luzia Neide aguardava dentro do fusquinha, rezando e suando apreensivamente “ Sai ou não sai, Minha Nossa Senhora!” enquanto o Nene era esmiuçado, ao avesso, dentro do prédio da Federal.  Demorou uma eternidade, mas lá vem ele, pálido com uma broa, mas com um largo sorriso de felicidade no rosto.  Aprendera, com a esposa, a sair pela tangente nas respostas!
             Recentemente, só para me contradizer, pois achava a juventude de hoje totalmente alienada, sem saber o que é contestação, defesa de causa, ou voluntarismo e nem sequer imaginavam o que foi os horrores da ditadura, e fiquei surpreso ao ver um Levante Popular da Juventude, em apoio à comissão da verdade, os jovens picharam certas calçadas com os dizeres: Aqui mora um torturador!
            Faz-me recordar daquela madrugada boemia de um singelo sábado do ano de 1983, nas calçadas dos bares da Avenida José Bastos, em Fortaleza. Depois das aulas cansativas de sexta-feira é justo e meritório o alivio numa rodada de cachaça e cervejas. Num eclético grupo de universitários e professores, a conversa nunca é leviana. Andávamos com o jornalzinho do Pasquim e já se ouvia uns acordes de Diretas Já, pois a ditadura já afrouxava as rédeas.
            Um dos mestres pergunta se tínhamos assistido ao Canal Livre da TV Bandeirante e nos confirma que foi com Teotônio Vilela. Outro reclama que a inflação ultrapassara o patamar de 200%. Até nas brincadeiras havia cultura. A certa altura cada um tinha que dizer o nome de uma pessoa ilustre e uma coisa bem significativa de sua terra. Um fortalezense brincando, disse: – O bode Ioiô e a praia de Iracema! Risos e protestos! Ele corrige trocou o bode por Gustavo Barroso. Um sobralense afirmou: – Belchior e o Arco do Triunfo e não se contradisse, pois vivia cantarolando “Eu sou apenas um rapaz latino-americano...”
             Minha timidez já estava adormecida pela neblina do álcool e na minha vez detonei, alto e em bom tom, para que todos pudessem ouvir: – O Rio Poti de onde tirei o sangue que corre em minha veias e um guerreiro imortal chamado Dom Fragoso!
             A noite é uma criança e a madrugada é dos boêmios inveterados. Às três da manhã só restavam mesas vazias, garrafas consumidas, eu e o saudoso amigo Pedro Mota, o melhor professor de desenho técnico que já houve naquela redondeza.
            Sem pedir licença, um cidadão aproxima-se e senta-se na nossa mesa. Identifica-se como Polícia Federal, já mostrando um distintivo na carteira e uma pistola na mão! Pede que nos identifiquemos. Pedro mostra seu documento, ele ler e o devolve. Mostro a minha identidade, ele só olha para o fundo dos meus olhos e pressinto a frieza e uma raiva louca naquele olhar que rosna raivoso: – Eu sabia que você era da terra daquele comunista imundo! Só não lhe meto uma bala na testa, agora, porque ainda tem gente aqui na rua! Levou o documento aos dentes, rasgando-o como a um osso na boca de cão esfomeado. Joga-o ao chão, levantou-se e vai embora.
            Guardo esse documento, como um precioso troféu, não pelo sufoco daquele dia, mas como uma lembrança de um cidadão do bem que infundiu medo, desespero e raiva na mais vil das ditaduras!    

 

Raimundo Candido

Elias de França disse...
O seu troféu, Raimundo Cândido, reluz aos olhos de todos nós e clama que todas as histórias silenciadas pela brutalidade sejam agora contadas, pois " a verdade ainda que tardia". Se há hoje os que podem gritar indignação, porque houve os que não calaram quando a ordem era silêncio e medo. Que a história nunca esqueça os nomes daqueles que tiveram a coragem e a dignidade de enfrentar o peso dos tanques e os horrores das torturas, tendo muitos a própria vida sefada!

 

 

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