A nave da Igreja Senhor do
Bonfim nunca admitira tantos fiéis como naquele distante domingo de janeiro de
1926, estava lotada. Aglomera-se gente até nas calçadas e, na ponta dos pés, estiravam
o pescoço para melhor ver e ouvir a homilia do Padre Juvêncio. A pregação do
sacerdote teve de tudo, menos o seu estilo característico, coloquial e
ameaçador, sobre as benesses e os castigos do Evangelho. O Padre Juvêncio, ao
perceber a grande inquietação, parecia um psicólogo:
- Meus amigos, fiquem calmos!
Sabemos que os revoltosos estão chegando, mas não se alvorocem, por favor!
Rezemos para que tenhamos a proteção de Nosso Senhor Jesus Cristo!
A maioria não esperou o final
da missa. A prédica surtira um efeito contrário. Correram para suas casas e
reforçaram as tramelas das janelas e das portas. Pelas ruas só se via os
soldados dos municípios vizinhos ajudando à força policial do Governo Federal e
da cidade de Crateús a reforçarem as barricadas e a cavarem trincheiras na
Praça da Estação.
Alguém, imprudentemente e numa
propagação desesperançada, anuncia aos quatro cantos da cidade, para que todos
possam ouvir:
- O aviso do ataque veio pelo
telégrafo da estação! A coisa não é de brincadeira, meu povo! Quem puder que se
salve, pois o Capitão Peregrino soltou até o famigerado cangaceiro Zé Mourão,
para proteger a nossa cidade!
O alvoroço, que já era grande,
piorou. Os mais abastados, na calada da madrugada, sumiram para as fazendas, em
ligeiras tropas de animais e, antes de escapulir, enterraram suas patacas de
ouro e prata, amarradas em mocós de couro de bode, debaixo de algum verde
juazeiro, pelas redondezas da cidade. Nestas desesperadas apreensões, para
evacuar uma população em perigo, a quem tolha os movimentos e trave as suas
ações, mas também há quem cedo se alvoroce e busque as soluções dos desespero.
Um trem estava parado na
estação. E da idéia para a ação foi só o tempinho de reunir algumas famílias
importantes, incluindo a do maquinista e do foguista, sem eles não teriam como
partir. Tudo em surdina. Não poderiam espalhar a notícia, pois não
comportaria uma cidade inteira nos vagões da Maria Fumaça. Dizem que foi o
único trem que partiu sem um apito de despedida, e até o fumo que exalava de
sua negra chaminé era pálido como a neve, para não chamar atenção! Mesmo assim,
estava abarrotado de gente, que desertavam de sua cidade.
Fora o desagradável sacolejo
dos vagões e o repetitivo som metálico: tchuc tchuc tchuc das rodas de aço nos
encontros dos trilhos, só se ouvia as aves marias e as salve rainhas, quase
silenciosas, dos lábios das aflitas senhoras com terços nas mãos. Algum soluço
choroso, pelo pavor reinante nos lábios de uma criança, era imediatamente
abafado. O Trem do Medo abria caminho pela madrugada incerta e todos tinham a
impressão que caminhavam para a morte!
Alguns corajosos cidadãos, com seus revólveres
winchester Smith na cartucheira, ou mesmo um socadeira dependurada no ombro,
confabulavam com o condutor sobre a probabilidade de encontrarem os revoltosos
pela frente, eles diziam:
- Maquinista, se avista uma
tropa com lenço vermelho no pescoço, não pare o trem, siga em frente!
Avisaram para os demais
passageiros que ficassem abaixados, principalmente quando passassem por uma cidade,
e quem olhasse para aquele trem, deslizando sobre a linha férrea, teria a
impressão de que era uns vagoes fantasmas, sem um vivente nas cadeiras.
O trem, enquanto engolia
carvão, comendo distâncias, soltava fumaça e já passara pela cidade de Ipueiras,
ao sopé da Serra de Ipiapaba, sem parar. Subitamente um grande medo toma conta
de todos, pois o maquinista reduzira a velocidade. Na frente, um amontoado de
dormentes despregados sobre os trilhos, anunciava perigo. Tiveram que parar,
senão desencarrilhariam e seria grande o desastre. Primeiro, perscrutam
qualquer som estranho, como um estalar de galhos, vozes de soldados ou o
engatilhar de fuzis, pois estavam todos abaixados. Levantam-se, lentamente, e
percebem que estão sozinhos, sem poder seguir para a cidade do Ipu. A linha
férrea havia sido destruída.
Ponderam sobre o que fazer,
diversas sugestões aparecem, até em abandonar o trem e ganhar a caatinga sem
rumo, em busca de algum socorro. O maquinista, como líder experiente, toma uma
firme decisão, ele retornará e quem quiser ficar, que fique e ganhe as brenhas
da caatinga, sem comida, sem água para beber. Todos resolvem segui-lo e o trem
começa a longa viagem de volta, rumo à cidade de Crateús e de marcha à ré.
As mesmas orações que foram
ditas na vinda são, desesperadamente, reconfirmadas na volta, pois mesmo em
regresso, continuam numa viagem de fuga e cheia de incertezas. Mais de 200
quilômetros percorridos pelo Trem do Medo, onde em cada janelinha semiaberta
pares de olhos imaginam vultos armados nas moitas de mufumbo, que margeavam a
linha férrea.
Ou foi o poderio das rezas das
senhoras ou um grande lapso da sorte, pois o destacamento de João Alberto
marchava seguindo a linha férrea. Retornam à Crateús, são e salvos. Param o
trem ao lado de uns cargueiros repleto de algodão, e se dirige as suas casas,
vão reforçar, também, as tramelas da portas e das janelas.
Foi a tempo de saberem
notícias de um estranho mendigo, se fazendo de aleijado, pedindo esmolas pela
cidade, perambulando pelas ruas, mapeando tudo, caxingando por uma perna e com
uma suja capa preta cobrindo a cabeça. O pedinte estira a mão para o casarão da
Rua João Tomé nº 290 e pede esmola. Dona Isabel Bonfim Leitão oferece água,
café e bolo, mas nota que o aleijado tinha boas maneiras, firmeza em pegar na
xícara e levá-la à boca. Corajosa, pergunta:
- O que o senhor sabe dos
revoltosos?
- Minha Senhora, eu não sei de
nada, só sei das minhas esmolas!
Era o capitão Pretinho,
perigoso espião do Batalhão de João Alberto, que anunciava angustiantes
momentos de tempestades e medo!
Às três horas da madrugada,
quando os revoltosos soltaram uma saraivada de fuzis, pelos cantos, denotando o
cerco da cidade, os corações dos passageiros do Trem do Medo aceleraram
novamente em disparada, e ao mesmo tempo sentiram alívio por não terem
encontrado esses disparos em sua frustrada rota da fuga. A força policial que
defenderia a cidade, revida com um crepitar intenso de fuzilaria. Era a cidade
de Crateús em guerra!
O cangaceiro Zé Mourão rolava
pelas calçadas e, agilmente, disparava seu fuzil, tal qual o bacamante de
Alexandre Mourão, mas a Praça da Estação caiu em poder dos revoltosos, que
ataram fogo nos cargueiros com algodão.
A nossa sorte foi que o
Quartel General da polícia era a Matriz do Senhor Do Bonfim e do alto de uma
das Torres um tiro certeiro acerta Antônio Cabeleira que saía correndo de uma
casa em frente à Igreja. O tiroteio continua cerrado.
Dona Maria Augusta, olhando
por uma fresta de porta, atesta o fim da luta. O Pelotão de policiais comandados
pelo capitão Peregrino Montenegro encontra-se com uma tropa de revoltosos
liderada pelo Tenente Tarquínio, na Rua da Pimenta, separados por um monte de
pedras. Os dois oficiais, em duelo, trocam palavrões, vitupérios mútuos e por
fim, tiros, mas erram. O Tenente provoca o Comandante da guarnição de Crateús
para uma luta, na ponta ferro branco. O que faz Peregrino gritar: - Pois então
saia daí e venha brigar! Mal o delegado de Crateús fecha a boca, já viu diante
de si o audaz guerreiro revoltoso, que foi recebido com um tiro certeiro de
mosquetão. Com o revoltoso ao chão, as pontas de facas o acabam de matar.
Era o crepúsculo de uma luta
feroz pelas ruas de Crateús. Os
revoltosos, com seus lenços vermelhos nos pescoços, desaparecem pela Várzea dos
Paus Brancos, foram enterrar seus mortos... Mas as lutas, as eternas lutas,
pelas quais começaram uma grande marcha contra as fraudes eleitorais, a
concentração de poder político nas mãos das elite agrárias, exploração das
camadas mais pobres pelos coronéis, ainda continuam...
Pelo visto, os Trens do Medo nos
trilhos da vida, permanecerão a circular!
Raimundo Cândido
José Alberto de Souza disse ...
Isto já não é crônica, mas sim capítulo de um romance histórico que, a partir deste momento, esse grande escritor está desafiado para concluir, pois deixou seus leitores ansiosos em saber começo e fim de tais acontecimentos.
Joâo Silas Falcão Soares disse...
Poeta e presidente eleito da Academia de Letras de Crateús, Raimundo Cândido. Li e reli com atenção única e vigorosa a sua crônica histórica e muito bem narrada. O título O trem do medo se encaixou com muita fidelidade ao contexto da narrativa de medo, receios, fugas e perigos. Desde criança escuto falar dos revoltosos, da Coluna Prestes em nossa cidade, mas não com detalhes como você abordou. Sei que você tem muitas pesquisas sobre a história de Crateús. Muito bom porque todas estas pesquisas serão assuntos para suas crônicas.
Parabéns, amigo cronista.
José Alberto de Souza disse ...
Isto já não é crônica, mas sim capítulo de um romance histórico que, a partir deste momento, esse grande escritor está desafiado para concluir, pois deixou seus leitores ansiosos em saber começo e fim de tais acontecimentos.
Joâo Silas Falcão Soares disse...
Poeta e presidente eleito da Academia de Letras de Crateús, Raimundo Cândido. Li e reli com atenção única e vigorosa a sua crônica histórica e muito bem narrada. O título O trem do medo se encaixou com muita fidelidade ao contexto da narrativa de medo, receios, fugas e perigos. Desde criança escuto falar dos revoltosos, da Coluna Prestes em nossa cidade, mas não com detalhes como você abordou. Sei que você tem muitas pesquisas sobre a história de Crateús. Muito bom porque todas estas pesquisas serão assuntos para suas crônicas.
Parabéns, amigo cronista.
Isto já não é crônica, mas sim capítulo de um romance histórico que, a partir deste momento, esse grande escritor está desafiado para concluir, pois deixou seus leitores ansiosos em saber começo e fim de tais acontecimentos.
ResponderExcluirPoeta e presidente eleito da Academia de Letras de Crateús, Raimundo Cândido. Li e reli com atenção única e vigorosa a sua crônica histórica e muito bem narrada. O título O trem do medo se encaixou com muita fidelidade ao contexto da narrativa de medo, receios, fugas e perigos. Desde criança escuto falar dos revoltosos, da Coluna Prestes em nossa cidade, mas não com detalhes como você abordou. Sei que você tem muitas pesquisas sobre a história de Crateús. Muito bom porque todas estas pesquisas serão assuntos para suas crônicas.
ResponderExcluirParabéns, amigo cronista.
Silas Falcão
Essa historia e semelhante ao ocorrido em Mossoro quando Lampião tentou invadir para assaltar o Banco do Brasil.
ResponderExcluirhttps://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/metro/a-derrota-da-ousadia-de-lampiao-ao-tentar-invadir-mossoro-1.1955263
Eu morei em Independencia (CE) e lá conheci dois personagens da região - já faleceram - que sabiam muitas histórias de Crateus. Um era o conhecido Major Mourão e o outro era o Raimundo Carpinteiro.
ResponderExcluirMe contaram que o Pistoleiro "Zé Mourão" (meu tio) era muito amigo do Dr. Jeson, ex-deputado, que também era coiteiro dele.