terça-feira, 13 de agosto de 2013

O Pai-de-chiqueiro

                                                                   
             Sou sertão! Nasci sertão e vivo sertão! Corre, em minhas veias, a seiva vivífica das catingueiras, dos angicos e dos marmeleiros! Detenho, impregnado no faro, o cheiro consistente do mufumbo a perfumar a vasta e desamparada caatinga que se estampa no meu olhar.
Trago, embutido no cerne inflexível de mim, um desalento cassimiriano, quando diz: —   Não sei porque - mas a minh'alma é triste! Perdi os risos - a minh'alma é triste!
                Agora, pagando tributo a uma bucólica dor, caminho por uma tortuosa vereda da qual se vê, ao longe, uma velha casa alpendrada em aspecto decadente e as ruínas dos currais que o impiedoso tempo corrói. A vista cansada percorre o eito do abandono no solo esturricado e a mata seca que resiste a uma cruel estiagem, por três seguidos e demorados anos. O sol da manhã já é impiedoso com um calor refletido dos esbranquiçados ossos espalhados pelo chão, tudo que restou das carcaças, antes criação de robustos animais de criação. Prevejo o presságio das mandíbulas da calamidade! Sinto o que essa terra secular sempre sentiu, o ansioso desejo de um líquido precioso, da água salvadora, numa sede que vem lá das entranhas. Busco um copo de água, das mãos cordiais do sertanejo morador da descorada casa, um cidadão rude, mas hospitaleiro acima de tudo. 
                Caminho ao lado dos currais. A porteira escancarada espera a volta de fantasmas. No aprisco das cabras uma ampla latada oferta o alivio das sombras, mas só para o estrume de bolinhas roliças e ressequidas, nem sinal de um dócil cabritinho demonstrando o longo desuso do recinto e ainda sinto um cheiro forte de um ranço no ar, odor característico dos bodes.
                Dou alguns passos rumo ao alpendre da fazenda, em busca de matar minha sede e ouço um insistente balido, como um chamado:
                — Béeeeeeee! — Béeeeeeee!
                Paro, instantaneamente. No lugar da água redentora para consolar minha sequidão, circula nas veias é a impulsiva adrenalina, mandando-me correr.
                — De novo não, meu Deus do Céu! Mal me recuperei do susto de um jegue falante, já me aparece um bode, agora!
                Embora pouca, coragem foi o que nunca me faltou! Viro-me, lentamente, rumo ao portão do chiqueiro das cabras e um velho bode de longa barba decaída e enormes chifres retorcidos, apresenta-se numa voz puxada e decrépita:
                — Professor Raimundo, aguardava o senhor, por aqui!
                O pai-de-chiqueiro exala um inhaca insuportável e seus claros olhos baços me fitavam como se olhasse para um dos seus semelhantes, um igual. Não consegui dá nem um educado bom dia e, percebendo minha surpresa, o bode continua a falar:
                — Está vendo o abandono em que estamos, professor! Esta seca foi tão perversa quanto àquela que matou o bode do qual senhor usou a carcaça, para tirar um retrato lá em Campo Maior, a terra dos Heróis de Jenipapo e da carne de sol!
                — É verdade, amigo, foi uma seca braba! Consegui responder.
                — Braba é pouco, Seu Raimundo! Está foi mortal, destruiu praticamente todo sertão! Veja aí, como está o chão, apinhado de ossos do gado do patrão, nem o cavalo alazão escapou, e mesmo o jegue, a quem você endeusa, não resistiu. Agora, com seu olhar de poeta chorão, me procure por aí, a ossada de uma cabra ou de um bode... Encontra não, Professor! E quer saber por quê? Deixe eu lhe dizer: Há 7 mil anos, que a humanidade aprende com a gente a resistência e a capacidade de adaptação às condições extremas de vida e sempre somos nós que os salvamos, aos homens. Quando for beber água ali, na casa do patrão, pergunte porque a família dele ainda está viva, aí entenderá o que estou dizendo.
                O arquejado bode demonstrava uma sapiência secular e notei que ele fazia questão de me explicar tudo, tim-tim por tim-tim com a ânsia daquelas pessoas que nos pegam pelo braço e só nos soltam quando desabafa toda uma história que se engasga na alma. O velhusco pai-de-chiqueiro continua a sua lição particular de vida:
                — A seca é um horror secular e você sabe disso, amigo Raimundo, ela sempre existiu e voltará a existir. Desde que Dom Pedro II disse "Não restará uma única joia na minha Coroa, mas nenhum nordestino morrerá mais de fome" que os políticos vêm fazendo promessas e mais promessas, e quando “ela” chega, tudo é como antes, um Deus nos acuda e nem água de beber se tem! Mas para nossa conversa não ficar em vão, quero que leve uma sugestão para esses governantes metidos a sabichões, só há uma solução para essa situação: a criação extensiva de caprinos por todo o sertão! O Estado da Paraíba está conseguindo a sua redenção as nossas custas, os bodes! Lá, somos Reis, os Imperadores do sertão! A nossa festa e os nossos recursos incrementam a economia, valorizam a cultura, a história, o meio ambiente, a arquitetura e a gastronomia e resgatam a autoestima da população. Viu a nossa importância, professor!
                Com a pisada da impaciência e o nariz ardendo, tento me sair da presença do pai-de-chiqueiro, mas ele me retém com autoridade firme dos anciões:
                   — Calma amigo, deixe-lhe dizer mais uma coisinha importante e nem lhe peço desculpa, porque é uma grande verdade! Sei que você não dorme com as cabras, mas é um dos nossos, um libidinoso bode e se pudesse teria uma harém, como nós temos os fatos, repletos de odaliscas caprinas. Você é como o poeta paraibano Ariano Suassuna, criador de bode e que um dia disse:  "Uma das cenas mais bonitas, cavaleiras e fortes que já vi em minha vida foi a de um pai-de-chiqueiro enorme e preto cobrindo uma vermelha e nova novilha-de-cabra, num pedaço áspero e bruto da caatinga sertaneja".  E não deixe que muita gente leia o que anda escrevendo, meu amigo, senão esses assuntos chagam aos ouvidos de quem não pode ouvir... Cuidado com a cabrita Isabelle! Evite os dramas! Mas a vida humana é assim mesmo, uma tragédia e tragédia que dizer: tragos + otos ou literalmente, o Caminho do Bode, por isso calcule bem onde pisa, olhe direitinhos seus passos, faça como os velhos bodes, para não cair nos precipícios! Lembre-se, professor Raimundo, bode, nesta vida, somos todos!
                Esse último conselho foi a gota d’água para escapulir, não aguentava mais tanto atrevimento daquela sabedoria bodiana, ainda mais metido a filósofo, e até meus olhos começavam a arder com o aroma enjoativo que empestava o ar.
                — Obrigado pela bela aula e pelos bons conselhos, amigo pai-de-chiqueiro! Eu levarei sua sugestão ao prefeito da nossa cidade, mas não estou aguentando mais de tanta sede!
                Caminho até o alpendre da casa da fazenda, peço um copo de água ao respeitável senhor que se apresenta e que me pareceu tão velho quanto o bode do abrigo das cabras.
                Bebo sofregamente o líquido precioso e raro por aquela região e pergunto ao fazendeiro:
                — Amigo, me diga uma coisa: Aquele bode que está solitário, ali no chiqueiro, não tem o que comer e o que beber não?
                — Que bode, meu senhor? A última peça do rebanho de caprinos que a gente tinha nós comemos, um velho pai-de-chiqueiro de carne dura que nem pau ferro, há dias!
                Agradeço a hospitalidade do sertanejo, baixo a cabeça, sigo em frente e por outra vereda, para não passar em frente ao aprisco das cabras. Será que além de velho e caduco estou tresvariando assim, para ver um bode velho que já morreu, na porteira de um curral!
Evito olhar até para os troncos das árvores, pois tenho a impressão de que tudo berra!
— Béeeeeeee! — Béeeeeeee!


Raimundo Cândido

Um comentário:

  1. O sertanejo é antes de tudo um forte,
    assim definiu Euclides da Cunha,
    relatando para o resto do Brasil
    a saga de Canudos que lá se ocorria.

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