Enquanto o Universo flui constante, a instável compleição
da humanidade evolui, material e espiritualmente, mas a natureza humana nunca
deixou de ter seus ritos de passagens como nas festas de salões, nas atividades
religiosas dentro das catedrais ou mesmo na assinatura de um simples papel
cartorial, confirmando a admissão de um jovem para uma nova etapa de vida. Impressionei-me,
e comovido estou, com o momento ritualístico dos índios canadenses, chamados Algonquinos,
eles enjaulam os meninos das tribos e os obrigam a ingerir wysoccan, uma droga
fortíssima e toda memória da infância é apagada das mentes dos jovens aborígines,
para que possam se tornar homens e membros produtivos na tribo. Admiro a faculdade de reter as impressões
esmaecidas do tempo, guardar as reminiscências da infância e relatar em FATOS E
CAUSOS de um tempo pretérito, pois é um privilégio para poucos cidadãos no
mundo, menos para os jovens Algonquinos que perderam as lembranças do passado.
O poeta Saramago, categórico, afirmou: “Fisicamente,
habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória.”
Em Cratheús, da distante década de 1920 e era da
fundação do PC do B, o jovem Ferreirinha e o irmão caçula, Afonso, munidos de compridas
varas enforquilhadas em rodas de madeira, engenhoca chamada “Mané mago”,
dirigem-se ao poço da Sensa, ou à grota das cajás, para carregar latas d’água das
cacimbas que margeiam o Rio Poti. Há pressa no caminhar dos meninos, pois terão
ainda que cortar madeira para as brasas do fogão a lenha e devem voltar rápido para
ajudar o pai, Seu Norberto Ferreira, distribuindo as bolachas da padaria, em
balaios, nas bodegas dos Senhores Manoel Barbosa, Manoel Mano, Zé Bibino,
Raimundo Cândido, Raimundo Fernandes, até nos últimos botequins do distante
bairro dos Paus-Brancos.
Norberto pai, empresário de visão, até construía casas
para alugar e garantir o futuro dos meninos, que tinham que colocar areia,
tijolos, telhas, pedras no local das ditas construções. Depois da missão
realizada, tinham o direito de experimentar a gengibirra, um suco de frutas,
açúcar e gengibre, fabricados pelo Seu Cabeça Branca, a caminho dos banhos no
Curtume.
Enquanto se ocupam do mister do dia-a-dia, os olhares vão
captando as recordações do ar, os pés absorvem as lembranças da terra, alma vai
sorvendo um mundo avelhantado e anseiam estar com os meninos vadios, com as crianças engenhosas,
com os garotos briguentos que se divertem nos quintais e na piçarra das ruas,
coisas que eles não podem fazer, pois o rito de passagem ordenado pelo rígido
pai é trabalhar, sem oportunidade para estudar e raramente brincar. Atentos e
ativos, meninos-homens que sobrevivem sem tempo para os doces sonhos, pois toda
criança tem que ser pai de um ser que se humaniza e evolui, feito homem-menino aperfeiçoando-se
no Universo que flui.
Na escola da vida só é necessário saber ler, se o olhar
decifra os enigmas, se o olhar sente o invisível, se o olhar é de um vivo
pensar, então os ritos já estão superados e todas as passagens são um simples abre-te
sésamo, e foi o que ocorreu com o Jovem Norberto Ferreira Filho, o Ferreirinha,
um memorialista que aprendeu o significado de complicadas palavras com a mãe e o
entendimento do mundo com o pai.
Homem feito, na trilha do genitor que se foi, constitui
uma família sólida dentro dos bons princípios, pelo equilíbrio da alma e
intrepidez dos atos. Um altaneiro de costume simples e com a gentileza de um cavalheiro
inglês ao receber os amigos que vinham visitá-lo: Geraldo Melo Mourão, Abelardo
Montenegro, Pedro Lira, Juarez Leitão entre tantos... Mas sem perder a
simplicidade rústica e poética manifestada no semblante de sertanejo,
demonstrando, indistintamente, a todos, a admirável coragem cívica!
Homem-heroi, um dia viaja com o Padre Moacir, que
levava o pai, Estelano Cavalcante, para um sério tratamento de saúde em Fortaleza.
A Maria Fumaça para na amarelada estação de Ipueiras, enquanto quem chega desce
e quem parte diz um adeus lastimoso. Alguns curiosos sobem para prosear com os
conhecidos que viajam e o terceiro apito já alertava à partida, mas uma
displicente jovem, a Astrogilda Morreira, atarantada, cai entre os vagões do
trem, em ato contínuo o comerciante Ferreirinha, e o adoentado Estelano, numa
agilidade surpreendente seguram-na pelos braços e arremessam na calçada da
Estação. O Pe. Moacir ficou assombrado, pelo ato de heroísmo dos dois cidadãos
e pela surpreendente energia de seu pai, que não tinha forças nem para
sustentar o corpo.
Admirador inconteste das ideias comunistas que se
orvalhavam pelos rincões do País, tanto quando os companheiros de uma Utopia
Cabocla crateuense – Leia-se: Luis Mano e outros herois – até se candidatara a
Deputado Estadual, em 47, pelo histórico PC do B, mas amargou momentos de
aflição e medo no tempo da Intransigência.
Todo dia 3 de Janeiro, fogos de artifícios pipocavam
nos céus de Cratheús, pelo aniversário do Cavaleiro da Esperança, e ásperas
vozes cochichavam nas casernas: - Ouviram? É obra do comunista Ferreirinha!
Todo dia 1º de maio, os muros da cidade amanheciam
pixados, onde se lia “Viva o Dia do Trabalhador!”, “Viva a Classe Operária!”.
Nas casernas, em surdina, se diziam: - Viram? É obra do comunista Ferreirinha!
Até na Igreja, o Padre interrompia seu sermão cheio de
ameaças de um horrendo purgatório e vociferava: - Deviam pegar esse
comunistazinho e fazê-lo limpar os muros da cidade e com a própria língua! E
arrematava: - Os comunistas são crias do demônio que vieram para acabar com a
Igreja e a Democracia! Apontava o dedo em riste para a residência do famoso
comunista crateuense e finalizava: –
Muito cuidado com ele, meus fiéis!
Qualquer alvoroço diferente na cidade, os militares iam
buscar o Senhor Ferreirinha para prestar esclarecimento, e o Heródoto
crateuense saía de lá com uma pesada ameaça de longa e indefensável cadeia.
As reuniões do partidão não tinham hora de ocorrer e podiam
ser na padaria, na loja ou na própria residência de Senhor Ferreirinha. Dona Maria
de Lurdes é que não gostava muito e sempre reclamava: - Isto é um absurdo,
Ferreirinha! Esses homens entrando aqui em casa, a essa hora da madrugada! Os
conspiradores eram pedreiros, carpinteiros, pintores, mecânicos, padeiros,
pequenos comerciantes, todos almejando progresso e justiça social.
Certo dia uma das filhas, Maria da Glória, chegou chorando
do colégio e disse que fora insultada por uma coleguinha que a chamara assim: -
Ei, filha de comunista! O Senhor Ferreirinha teve que ir a escola passar uma
borracha naquela ignorância, ensinar a não discriminação e o que era um bulling,
para aquele corpo docente e discente.
No dia 31 de março de 1964, após ouvir a voz do Brasil,
Norberto Ferreira Filho chama toda família e em tom solene, esclarecer: - Meus
queridos filhos, daqui pra frente, vamos ter uns tempos difíceis! Hoje caiu um
véu negro sobre o Brasil!
E o véu chegou rápido, pois o grupo de 16 pessoas que haviam
assinado um documento de apoio ao Presidente João Goulart, foram declarados
culpados e o Senhor Ferreirinha penou, com seus camaradas, 6 meses de injusta
prisão.
O Heródoto nordestino, dono de uma memória magnífica,
tinha que reconstruir as lembranças do sertão e faz como lhe ensinara o Professor
Luiz Bezerra, mentor e amigo, escrevendo crônicas que são lidas, semanalmente,
na Rádio Educadora, resultando nos preciosos livros que publicou. E sempre
exercitava seu dote recitativo com o poema Caridade e Justiça de Guerra
Junqueira, impressionando os ouvintes nas atividades sociais em que era
convidado: “- No topo do Calvário erguia-se uma cruz, / pregado sobre ela o
corpo de Jesus...” Os aplausos eram vigorosos pela emoção transmita na voz do
recitador.
Se não fosse a intrepidez deste memorialista singular,
estaríamos fadados ao longo esquecimento na historia e tenho a impressão que
Cratheús faria como os aborígenes canadenses, obrigando seus filhos a beber wysoccan,
para apagar da memória o nosso passado.
Hoje encontramos
Seu Ferreirinha sentado na calçada de sua casa, acompanhado de uma senilidade
comum aos que atingem a longevidade. Um homem-menino tão só, mas com a mesma
esperança utópica de felicidade no rosto, coisa que nunca deixou de ter e ainda
preserva aquela vontade de brincar na piçarra das ruas com os meninos traquinas,
mas com a serenidade de quem alcançou as estrelas e guarda a luminosidade,
na magnífica memória!
Raimundo Cândido
José Alberto de Souza disse...
Já andei lendo
sobre a influência
do tempo da infância
na formação marcante,
da qual nunca se liberta,
no sólido preparo
de um bom escritor.
José Alberto de Souza disse...
Já andei lendo
sobre a influência
do tempo da infância
na formação marcante,
da qual nunca se liberta,
no sólido preparo
de um bom escritor.
Já andei lendo
ResponderExcluirsobre a influência
do tempo da infância
na formação marcante,
da qual nunca se liberta,
no sólido preparo
de um bom escritor.
Valeu pela homenagem e lembrança pela massagem de seu aniversário.
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