Dezenas de séculos depois, nos
idos de 1700 da história do Brasil, nos sertões de Cratheús, onde perambulavam índios
tapuas, os Kara-thi-us, ainda pertencentes ao domínio do Piauí, um bucólico povoado
afoitava-se em existir. Nas margens serpenteadas do Rio Itaim-Assu, os
primeiros currais de gado começaram a aparecer, ao lado de uma grande invenção
daquelas civilizações antigas, a enxada, usada como arado para revolver e
renovar os substratos da terra.
Casinhas de taipa iam se
aglomerando, em torno das outras, habitadas pelos descendentes dos colonos que
foram os primeiros sesmeiros dos lotes de terras da região dos Caratius. Em
1770 é construída uma capela, em homenagem ao Senhor do Bonfim, uma imagem de
madeira vinda da Bahia a mando de Dona Luísa da Rocha Passos.
O povoado, denominado Piranhas,
que brotava do descampado subjugado a machado, facão e foice, possuía dois
marcos de referências importantes, motivo de orgulho para seus habitantes, a
branca capelinha com um cruzeiro de madeira fincado no alto de sua fachada,
onde o Pe. João Ferreira dos Santos, da Vila de Marvão, vinha em comissão de
evangelização, para a desobriga dos sacramentos, batizados e casamentos e o
intermitente Itaim- Assu, o rio das pedras grandes, com suas águas
transparentes e puras e que, já nas proximidades do povoado, é chamado de Potingh
- afluente do grande rio, na linguagem indígena, ou com o poético significado
de águas de camarão - quando parte em fuga, rumo ao paredão da Ibiapaba.
O filho das nascentes da Serra
da Joaninha, já deixara de correr em sua calha seca, pois a época invernosa já passara,
mas fica decantando como lâmina espelhada nos poços, largos e profundos, repletos
de peixes: curimatãs, piaus, traíras, mandis, cari-bodós, branquinhas, surubins
e as carnívoras piranhas, vermelhas ou pretas, mas todas perigosas com dentes
serrilhados, afiadíssimos e um faro muito apurado para o sangue! Todos os poços
eram infestados destes peixes vorazes, daí o nome da bucólica localidade:
Piranhas! Alguns até chamaram o velho e intermitente Rio Poti de o rio das
piranhas!
Os habitantes do lugarejo, ao perceberem a
poeira levantada pelo redemoinho em pleno meio-dia, fazem o “pelo sinal” para afastar
um Saci Pererê que passa, à luz do dia, rodopiando em desafeto e dissipando ofensas.
Muitos compram água das cacimbas do Retiro, cargas transportadas em canecos
pelos incansáveis jegues e enchem os potes de beber e os tachos de banho. A
maioria vai tirar a poeira do dia-a-dia e dos empoados remoinhos trazidos pelo
negrinho de uma perna só, nos banhos da Goela e do Curtume, arriscando uma
mordidinha da famigerada piranha.
A boca deste peixe, quando
fechada, engana os imprudentes, parece banguela, mas numa rapidez tremenda
abocanha a sua presa e o sangue escorre fazendo com que todo o cardume entre em
desenfreada frenesi e, em poucos minutos, só restará um alvo esqueleto, raspado
a navalha, do que antes fora vida. Era um espetáculo horrendo, um show cruel do
peixe carnívoro no leito do Rio Poti, capaz de fazer inveja às películas de
terror da indústria cinematográfica de Hollywood.
Algumas localidades conservaram
seus nomes de peixes, como Jardins das Piranhas (RN), Peixe-Boi (PA),
Peixe-Gordo (CE) e mesmo a cidade de Piranhas em Alagoas, banhada pelo
majestoso Rio São Francisco, onde ficaram expostas as cabeças de Lampião, Maria
Bonita e nove cangaceiros decapitados, todos à mostra infame, na escadaria da
Prefeitura Municipal daquela cidade peixeira.
Quando o historiador Antonio
Bezerra esteve em Cratheús, no ano de 1884, foi tomar banho nas águas famosas do
Curtume, e ficou sabendo que: “Há muitos anos, um grupo de senhoras tendo ido
banhar-se naquele poço, uma caíra inesperadamente na água e, fora assaltada
pelas piranhas ( Serrasalmus piranha). As
companheiras pedem socorro, e chegando um preto nadador, não mede o tamanho do
seu sacrifício, atira-se ao fundo do poço, saindo à riba oposta com o precioso
fardo, mas em vez de ter salvado uma preciosa mulher, traz um esqueleto
horrivelmente mutilado. O nadador não sofreu a mais leve arranhadura.”
A literatura crateuense é rica
em espetáculo macabro das piranhas, quando estas carniceiras ainda existiam no
bojo do nosso querido rio, porém, hoje, maltratado
e abandonado. Conta-nos o Senhor Norberto Ferreira Filho no Livro Fatos e
Cousas do Passado sobre as piranhas do Poti: “Estávamos no verão de 1931.
Grandes farras já se faziam naquele tempo. Depois de uma dessas festas, alguns jovens
operários rumaram para o grande poço denominado Curtume, ponto tradicionalmente
preferido pelos que gostavam de natação. Eram quase seis horas da manhã e já se
retiravam os banhistas, o Lourenço da Cecília disse que ia dar mais um mergulho
e, por ironia do destino, antes de pular da lisa pedra do mandi, falou “Adeus,
negrada”. E daquele mergulho não voltou mais o Lourenço e sim, um corpo com o
rosto todo comido por peixe carnívoro, que é a piranha.”
Há muito que o Rio Poti não é
mais o mesmo, pois está mais morto que vivo, resistindo às agressões humanas com
a força que a natureza guarda para se reconstruir e me lembra o Tietê paulista,
cheio de sulfitos e sulfatos, consequências de uma irresponsável poluição. Com
o projeto de saneamento da cidade de Cratheús era de se esperar que, uma
revitalização de nossa artéria vital ocorresse, mas num determinado dia ensolarado,
a CAGECE solta grande quantidade de uma amarelada salmoura química da estação
de tratamento e a vida que existia no leito do rio, a contar da velha Fazenda
Boa Vista, passando pelo Morro Alegre, pelo Quirino e descendo até o Vale da
Ibiapaba, pereceram todas: garças, socós, mergulhões, cagados, e os peixes...
Todos mortos! Acho que, as famintas piranhas que sobraram, ainda estão por aí,
na expectativa, em espreita nos açudes limpos da região, aguardando que o sofrido
Rio Poti um dia respire e reviva, para que possam voltar!
Sonho com o Poti dos poços
translúcidos e limpos de minha infância e até nas manchas oleosas de suas águas
poluídas vejo o voo branco das garças transbordando de sua paisagem, e não
quero mais essa solidão de suas águas poluídas que se mostram como túmulo do
silêncio.
Sonho com o Poti dos poços
translúcidos e limpos de onde, um dia, surgiu o povoado de Piranha, evoluindo
para uma bucólica Vila chamada Príncipe Imperial, hoje a promissora cidade de Cratheús,
como brotou Ur, Biblos e Jericó nas margens de seus caudalosos rios...
Sonhos com o Poti dos poços
translúcidos e limpos, mesmo que o veja, novamente, infestado de horríveis piranhas
carnívoras!
Raimundo Cândido
José Alberto de Souza disse...
Abençoada a comunidade
que dispõe de um poeta-historiador
para preservar a sua rica memória
em registros pictóricos
de artísticos coloridos.
Abençoada a comunidade
ResponderExcluirque dispõe de um poeta-historiador
para preservar a sua rica memória
em registros pictóricos
de artísticos coloridos.
Vivi minha infancia por ali e atesto a verdade muito bem descrita pelo estimado e culto amigo Raimundo Candido que era nosso vizinho. Ele esqueceu de falar das cheias anuais que inundavam sua casa a margem do Poti. Para as crianças, isso, era tudo alegria. Crateus sucumbiu, porém, quando viu sua punjante fé Catolica ser ultrajada por dezenas de anos pelo ateu comunista vestido de bispo o tal Fragoso, de herege nemoria.
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