quinta-feira, 3 de outubro de 2013

REVER É REVIVER

                       Memórias de Tarcisio Bibino

Uma comoção imprevista nos invade quando revisitamos as prateleiras do tempo e contemplamos alguns fragmentos da vida remota hibernando no empoeirado armário das eras.  Alguns instantes, já desbotados, insistem no esquecimento total e os deixamos ir... Outros, ainda expressivos, rebrotam do solo da memória, tão intensos, que se manifestam como uma nova alegria revivida.
Regando as emoções instaladas nos corações das crianças flui um riacho de águas cristalinas, carregando a aprendizagem de felicidade e o contentamento que reinará na vida futura, fruto deste arroio meninil, no qual imergimos e bebemos o doce existir, assegurando uma saudável existência.
De uma prateleira virtual, a Rua Frei Vidal da Penha, Tarcisio Bibino retira uma amostra de um belo instante e me apresenta, despertando-me as recordações, pois fui artífice desta peça mágica e sublime. Numa velha e surrada meia colocavam-se uns trapos de panos e se davam umas voltas no cano de Nylon, para no final costurarmos a borda, e uma macia bola de futebol estava finalizada e disposta a correr nos campinhos das várzeas do Rio Poti.
Dizem que a segunda metade de nossa vida é só para recordar a primeira, e com isso até cantei, mentalmente, uma canção-poesia de Milton Nascimento: “Bola de meia, bola de gude / o solidário não quer solidão / toda vez que a tristeza me alcança / o menino me dá a mão / há um menino / há um moleque / morando sempre no meu coração”
Tarcisio continua a retirar lembranças de seu armário temporal, dispondo-as ali na minha frente e promovendo, em mim, uma compaixão pela geração computador, respirando Playstation, alimentando-se de Facebooks e não passarão pelo que nós passamos, uma vida real e em abundância. Tarcisio me fala da Baladeira, o famoso estilingue, quando primeiro procurava uma apropriada forquilha bem resistente, num pé de velame ou pau-d’arco, e montava com tiras elásticas de câmara de ar, amarrando uma funda de couro cru e pronto, só precisava colocar o patuá dependurado no pescoço repleto de diminutas pedrinhas arredondadas, estava guarnecido de abundante munição. Partia cedinho e passava pelos Paus-Brancos da Boa Vista, rumo ao Junco, atirando nos despreocupados passarinhos, principalmente nas rolinhas, que podiam ir para a panela, como tempero do arroz com feijão. Na casa da Dona Ritinha Mano, sua mãe, a preocupação já passara dos limites, o rio transbordava nas alturas e Tarcisio não chegava para o almoço. Mandava alguém à procura do menino, mas deixava a palmatória sobre a mesa, uma peça circular com um cabo de aroeira, semelhante à Maria Bonita, do Colégio da Dona Delite. Nossas mães, dos meninos travessos, sempre avisavam: - Cuidado, crianças, as águas revoltas do Poti não possuem cabelos!
À tardinha, quando voltava do treino do futebol, lá do campo dos vencedores, ele avistava na esquina da Rua Frei Vidal com a Rua Pe. Juvêncio um grupo de ilustres senhores reunidos. O Seu Manoel Bezerra, fundador do jornal A Defesa e correspondente do Jornal O Povo, falava com todo o volume da voz, com as veias do pescoço pulsando exaltadas como suas palavras  que retumbavam no ar. Criticava a política local, reclamando da vida pacata e imutável da cidade para contumazes ouvintes, o Zé Bibino, dono da Bodega Sonho Azul e o Seu Leôncio, sempre a raspar um cipozinho de marmeleiro.
Estudar que era necessário, Tarciso estudava, mas não o suficiente. Do primário na Dona Natália, foi para o Instituto Santa Inês da Madrinha Francisca. Mas para passar no Curso de Admissão e poder ingressar na Escola de Comércio, recorreu-se mesmo foi com a Dona Delite que lhe passou uma longa frase para uma análise sintática, que ele logo decifrou a função de cada palavra dentro da oração. Outra recordação de sua saudosa prateleira é sobre o Professor Luiz Bezerra, o Prego de Dourado, na Escola Técnica mandando um aluno escrever no quadro negro a palavra dezessete e ironicamente dizia, para os que erravam: - Vocês estão bom é de voltarem para a carta de A.B.C.
O que Tarcisio sabia fazer mesmo era jogar bola e muito bem. Dom de poucos e desejo de muitos.  Um maestro dentro das quatro linhas.  Pouca gente sabe, até mesmo aqueles que torcem fanaticamente por algum time, que a bola, que a dita pelota, a redondinha, quando num palco verdinho ou mesmo no campo de terra batida, se transforma num organismo vivo, vivíssimo!
A irrequieta esfera de corpo faceiro fica olhando, procurando quem a entenda e, só para esses escolhidos, ela se entrega de corpo e alma. Os jogadores são como gladiadores numa árdua batalha de arena, assistidos por uma platéia ávida pelo momento máximo, o gol. Tarcisio sempre jogava como um segundo volante, fazendo ligação entre defesa e ataque. Os volantes são os verdadeiros verbos do futebol: receber, localizar, conduzir, coordenar e, se possível, finalizar como o responsável maior, o regente, e a esse a bola respeita! A resistência física e a potência no chute foram adquiridas nas peladas dos campinhos na beira do rio e nas longas caminhadas com uma baladeira rumo aos campos do Junco.
Dono de uma visão de jogo fantástica e passes extremamente precisos, além da potência na perna direita de onde a pelota era disparada como um limão, sem aroma e sem cor. E para quem não o viu o Tarcisio Melo jogar é só reparar no estilo do espanhol Xavier, do time do Barcelona.
Na época das arrojadas disputas entre os Times do Poti e do Ceará, ele fazia parte do escrete alvinegro, treinado pelo experiente Prequé, depois foi para o Cruzeiro, com a sede própria no Bairro da Ilha e sempre era convocado para defender a seleção de Crateús em pelejas memoráveis.
A seleção crateuense havia sido convocada para um jogo contra a seleção de Sobral. Até a potente Rádio Tupinambá se fizera presente naquele dia, para transmissão da grande disputa. No time de Crateús havia o Tarcisio, o Nenca, o Sirineu, o Gerardo Venâncio, o Raimundo da Maroca, o Louro e o imarcável Sebo, um dos maiores cabeceadores que já se viu sobre a face da terra. Dizem que na pancada da cabeça com a bola, o impulso adquirido era tal que tirava lascas de madeira no travessão.  O time de Sobral trouxe, entre outros, o Esquerdinha, o Nagibe, o Teco-teco e, para fechar o arco, um gato de agilidade no pulo e elasticidade de contorcionista, o grande goleiro Bacabau. O primeiro tempo termina 0 x 0 num jogo duro, com os jogadores disputando cada milímetro do campo com apurada garra e muita emoção. Faltando um minuto para terminar o segundo tempo, o Sebo prevendo o empate no fim do jogo, lança do meio campo a bola para o Tarcísio e grita: - Papoca daí mesmo, Tacisio! Estava muito fora da zona do agrião, como João Saldanha designava a Grande Área. Assim mesmo, Tarcisio adianta a manhosa uns três metros do seu pé direito e toma impulso. Um raio em noite escura é pouco, se formos comparar bem. Um disparo, como de uma baladeira, bem no alvo. Quando Bacabau pulou, pensando em fazer uma vistosa ponte, o limão já tinha estufado a rede e o Estádio Juvenal Melo só não veio abaixo com os gritos da torcida porque já é assentado no próprio chão. O que deu pena foi ver o afamado goleiro sobralense desgostoso, que nem voltou com a sua delegação, mergulhou foi num desespero alcoólico, de bar em bar, dizendo que nunca havia levado um gol como aquele, uma pedrada de baladeira, humilhante e desmoralizante.
Como a maioria dos crateuenses, Tarcísio migra rumo à uma melhor oportunidade, coisa que sua terra não pode lhe oferecer e com apoio do Padre Melo, trabalha e se forma em advocacia, lá pelo burburinho de São Paulo, ninho  dos Nordestinos corajosos. Mas não esquece o futebol e chega a jogar na Portuguesa santista pela 1ª divisão do campeonato paulista.  Passa num concurso para Delegado de Polícia no Estado do Paraná e trabalha até se aposentar, depois de perseguir bandidos, como fazia com os passarinhos, com sua baladeira nas veredas do Junco.
E o guerreiro retorna à terra natal, pensando num repouso merecido nas antigas terras da sua família, o Morro Alegre, mas encontra uma nova batalha para proteger o leito do Rio Poti dos esgotos da Estação de Tratamento da Cagece, que soltava dejetos líquidos e amarelados matando os peixes, os socos, as garças até no limite, quando o Poti entra no vizinho Estado do Piauí.
Tarcisio entrou com uma representação criminal contra o aumento abusivo da taxa de iluminação publica em Crateús: - Professor, foi um verdadeiro acinte contra a população de Cratheús, arbitrariamente encaminharam um projeto que é totalmente inconstitucional, e a Câmara de Vereadores aprovou! Como pode? Judicialmente é um projeto nulo, um desrespeito a constituição, um assalto ao povo! 
Considero a ingratidão um dos maiores pecados da humanidade. Tarcísio, ao retornar para sua terra natal, tem a grande idéia de elaborar um projeto para a implantanção da Universidade Federal do Ceará na cidade de Cratheús. Talvez influenciado pelo sonho do politizado  tio,  Zé Bezerra de Melo, que sonhou com a criação da Universidade do Vale do Rio Poti, implantada em Crathéus, Tarcísio fez todo levantamento necessário, um trabalho imenso e escolheu até o local apropriado, o polo agrícola do Junco onde, quando criança, caçava de baladeira. Entrega o projeto, juntamente com a Deputada Gorete Pereira, ao presidente Lula. Por tramites escusas tudo fica mofando nas gavetas de Brasília. Oportunamente, o PT o descobre e o executa. A Pedra fundamental foi lançada, oba oba pra lá, oba oba pra cá... E o nome do Tarcísio esquecido!!!
Um dia, o poeta Goethe disse: “A ingratidão é uma forma de fraqueza. Jamais conheci homem de valor que fosse ingrato”.
  Vejo, no olhar cansado do septuagenário Tarcisio Melo, uma réstia da robustecida felicidade do menino que tinha uma baladeira dependurada no pescoço, correndo atrás de uma bola de meia, sorvendo as águas mnemônicas do velho Poti e, acho que por isso voltou, como um herói que regressa ao torrão natal, e mesmo assim, encontra forças para novas brigas, pois todo guerreiro sabe que após as mil e uma batalhas de que se tem obrigação na vida, sempre restará mais uma peleja por lutar, embora corra risco de amargar novas ingratidões.


Raimundo Cândido

José Alberto de Souza disse...
Mais um capítulo da relevante história desta cidade na busca de seu reconhecimento como polo cultural de intenso brilho no cenário cearense. Ingratidões à parte, a expressiva participação daqueles que forjaram suas exitosas iniciativas se dilui em proveito de u’a massa ideológica.

Um comentário:

  1. Mais um capítulo da relevante história desta cidade na busca de seu reconhecimento como polo cultural de intenso brilho no cenário cearense.
    Ingratidões à parte, a expressiva participação daqueles que forjaram suas exitosas iniciativas se dilui em proveito de u’a massa ideológica.

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