Ocorre um milagre quando os
primeiros pingos de chuva tamborilam no solo calcinado do sertão. O sertanejo, uma
vitima inevitável da estiagem, vendo a terra molhada e o verde mato crescendo,
agradece a Deus pela abundante fartura e pela renovação da vida ao estrondo do
trovão.
A Caatinga, poesia fecunda, restaura-se pelo
aguaceiro que desce do céu escoltado pelos coriscos acesos que caem dos miolos
das nuvens, produzindo fartura de porção. O sertão, ditoso e rico, é mágico. Se
chover dá de tudo, como diz uma canção.
Nas fazendas de criação de
gado forma-se um pasto verdoso nas soltas ilimitadas, a forragem nativa de capim
mimoso, que logo se transformará em dinheiro vivo no bolso do patrão pela valorosa
carne de engorda. E, ao fim do inverno,
os criadores juntam suas boiadas já formadas, dezenas de reses corpulentas com o
peso ideal para venda e abate. É de onde provém a renda principal que mantém lucrativa
uma propriedade no impiedoso agreste.
Cratheús, do meado do século
XX, é uma pequena cidade que arduamente floresce nas margens do intermitente Rio
Poti e se desenvolve graças ao vai-e-vem dos trens correndo sobre os trilhos rumo
às cidades de Sobral e Fortaleza. Tudo se transporta nos vagões puxados pelas
hercúleas máquinas a óleo: além dos passageiros elegantes e resolutos, a diversificada
mercadoria dos comerciantes, os animais dos fazendeiros e as evasivas
esperanças de um município que, lentamente, cresce.
No lado esquerdo do majestoso
Prédio da Estação há um armazém abarrotado com pilhas de sacos de oiticicas, de
mamonas, de rapadura, de farinha oriunda da Serra dos Tucuns, e as carroças
continuam chegando com mais mercancias para se despachar no trem. Do lado
direito do monumento construído pelo Engenheiro João Tomé, antes do ponto de
manobra do velho viradouro, o povo se empoleira nos trilhos que formam as cercas
do Curral da Estação para assistir ao espetáculo de embarque do gado nos vagões.
Enchem uns dez gaiolões de treliças de madeira, com vinte cabeças em cada um,
para abastecer a Capital do Estado.
Era um gado curraleiro, mas rústico
chamado de pé duro que chegou ao Brasil nas caravelas dos colonizadores, com um
porte pequeno e chifres longos, mas de uma carne saborosa, gosto de pastagem
semelhante à galinha caipira do sertão. De vez em quando um animal, dos mais ariscos,
se assusta com a multidão curiosa ou com o aspecto ferruginoso do trem e foge, pula
ou passa por baixo dos trilhos, obrigando aos vaqueiros botarem os cavalos no
rastro do bicho e atalham antes que atropele um cidadão. Mesmo no burburinho da
cidade, os heróis do aboio, tinham que honrar o gibão!
Quando o Curral da Estação era
do lado da praça, o senhor Gentil Cardoso sempre fazia uma investigação minuciosa
antes do embarque, pois houve ocasião que ele ordenara aos encarregados que
retirassem suas reses que tinha acompanhado o gado que passava na rua e bem
sério, determinava:
- Ei, Gabriel e Papilina,
retirem aquelas duas reses que são minhas!
Vamos, soltem logo os meus bois!
Foi o Luiz Lima, funcionário
da Rede Ferroviária quem ajudou a mudar o curral para o outro lado dos trilhos,
o lado do viradouro e evitar os transtornos que estavam causando na cidade.
Os proprietários dos animais
de abate, os senhores Chico Pires da Independência, Raimundo de Pinho, Raimundo
Nonato, Milton Menezes e o Major Leônidas quando não acompanhavam, pessoalmente,
o transporte num vagão de passageiros, mandavam um encarregado como o Senhor
Antônio leite, homem de confiança de Seu Leônidas, que em cada estação,
verificava a situação dos animais, levantando os que estavam caídos para não
ser pisoteados pelos demais.
A volta era uma festa no vagão
Sonho Azul, muito dinheiro no bolso e cerveja borbulhando nos copos, ouvindo a
gaita do José Ivan Melo.
Passamos por essa bela época
de fartura nos Sertões de Cratheús onde exportávamos os frutos da agricultura e
os bens da pecuária, mas hoje importamos até água de beber. O Curral da Estação
foi desativado pela inclemência do tempo, que nem sempre permite que se cultive
uma simples roça de subsistência ou então, como uma fera impiedosa rangendo sequidão,
devorava os rebanhos de nosso sertão.
No ano de 1926 o Curral da
Estação esteve, momentaneamente, desativado. Depois que o Trem do Medo voltou
de marcha à ré da cidade de Ipueiras, numa fuga malograda do cerco dos
Revoltosos, uma nuvem de aflição pairava sobre a cidade de Cratheús. A força
Policial do Governo entrincheirada na Praça da Matriz e da Estação aguardava a
chegada dos Revoltosos. Eram os
legalistas, homens arrogantes, nervosos, violentos, exibindo uma autoridade
desregrada e faziam questão de mostrar tudo que podiam. Eram piores que os
barbudos revoltosos de lenço vermelho no pescoço, cometiam roubos, bebedeiras,
estupros, desmandos de toda ordem.
O comandante da Força
Policial, vendo-se sem um cavalo de montaria, convoca um crateuense chamado Negro
Cajueiro e pergunta:
- Negro, quem tem uma montaria
boa, por aqui?
E o informante reponde: - É o Seu Júlio
Urbino, da fazenda Pereiros! Ele tem a melhor burra da região, um animal
resistente , é bem mansa e marchadeira.
- Pois vão logo buscar essa
burra! Quero esse animal para minha sela! Ordena.
Seu Júlio Menezes havia
comprado a magnífica burra do irmão, Cícero Urbino de Menezes, um cidadão
resoluto que nunca provara o sabor insosso do medo e já demonstrara isso ao
salvar o irmão Pedro, quando o mesmo raptara a Maria Mathias. Nas veias de
Cícero, afora um rubro sangue, corria fibra, firmeza, determinação e coragem.
Soube que o comandante colocava a burra para dormir no Curral da Estação,
vigiada por um soldado e pede ao irmão um cabresto e a esteira. Seu Júlio até
que tentou dissuadi-lo deste intento, não houve jeito!
Na penumbra da madrugada, pelo
leito do Rio Poti, Cícero aproxima-se do vigia que tranquilamente roncava.
Encosta a arma no cangote do cabra e ordena:
- Não se mexa! Eu só vim
buscar meu animal!
Manda o soldado colocar o
cabresto e a esteira na burra e ainda determina: - Diga ao seu comandante que a
burra fugiu, senão você apanha dele e de mim. Devolve o rifle ao praça e some
pela margem escura do rio para entregar o animal ao seu legitimo dono, entes
havia retirado as balas do rifle do soldado, que ele não era besta.
Cícero e Júlio Urbino fizeram
um pacto de levar para o túmulo essa bela História, mas diz uma antiga tradição
que, três pessoas não devem guardar um segredo, se duas delas já estiverem
mortas. Saber exatamente a parte do passado que deve ser introduzida no
presente, mesmo que seja um sigilo, é um momento raro e precioso de resgate do
passado e somos gratos ao Senhor Milton Urbino Menezes que soube, dignamente,
honrar a memória dos que se foram.
Raimundo Cândido
Socorro Cavalcanti disse...
Parabéns, meu amigo, Raimundo Cândido, você é um admirável escritor. Parabéns por mais um texto que merece ser lido, relido e divulgado. Um abraço centrado no desejo de um feliz Natal e um Ano Novo repleto de alegria, saúde e paz.
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