Em tempo algum, um discurso antiguíssimo
foi tão atual!
No Brasil, do Oiapoque ao
Chuí, nunca se roubou tanto! Na quase totalidade dos 5570 municípios o modus
operandi da ladroagem é o mesmo, numa criatividade e imaginação insuperáveis para
o resto do mundo: Licitações viciadas, desvios de verbas legalizadas, tarifas
astronômicas, taxas abusivas que matam o cidadão e a Lei fazendo com que
“Fichas Sujas” fiquem limpas como o milagre da água em vinho, através de
acordos escusos e indecentes embargos infringentes. Noutro Civilizado Mundo,
dizem: No Brasil, o povo é bobo!
O destemido Pe. Antônio Vieira,
com o dedo em riste, concluiu ao pronunciar, lentamente, cada palavra como uma
punhalada sem misericórdia na consciência desavergonhada e incrédula da
platéia: — Basta, senhor, que eu, porque roubo uma galinha, sou ladrão, e vós
que rouba descaradamente da força pública, sóis Governador?
Ouçam... A voz de Vieira ainda
retumba no ar!
No ano de 1952, no Distrito de
Nova Russas, numa das grandes seca dos Sertões de Cratheús, ouviu-se o choro de
mais uma criança que nascia na prole, já numerosa, de Dona Maria e do senhor José
Henrique do povoado de Rosário. Era o menino Antônio Vieira, que foi adotado
pela caridosa Lili Rosa, compadecida daquela precária situação familiar, e
resolve levá-lo para o Rio de Janeiro. Poderia ter sido um benévolo padre, com a
aptidão do Paiaçu Vieira dos indígenas brasileiros, se a sorte assim o quisesse.
Não quis! Desde cedo a criança foi mostrando uma propensão natural para pegar o
que não lhe era devido. Um brinquedinho de um amigo, um lápis, uma borracha de
um colega no colégio e a coisa foi ficando séria. Tão séria que aos onze anos
pegou seu primeiro xilindró!
Os vizinhos o tinham na conta
de fino larápio e a polícia já o amaciara, por diversas vezes, com uns “leves
carinhos” de um cassetete. No Rio de
Janeiro desenvolveu a arte e a técnica de surrupiar como os gatos, de subtrair
furtivamente, imperceptível como se invisível fosse. Roubou até a quem o ajudou!
As inúmeras tentativas de
correção e a paciência de Dona Lili para entender o descaminho daquele menino,
já chegaram ao limite. Ele dizia que alguma coisa o impelia a roubar, como um
“Estalo de Viera” invertido, uma compulsão enorme para furtar o dominava.
Acorrentaram-no, inúmeras vezes, como a um animal perigoso no quintal e nada
adiantou! Mal se via livre das amarras,
os roubos começavam na redondeza.
A solução foi mandá-lo de
volta para Cratheús, aproveitando uma viagem de navio de Madrinha Francisca
Rosa que se encontrava na Cidade Maravilhosa. Torrou o dinheiro da digníssima
professora no bar da embarcação, e já surrupiara as reluzentes talheres de
prata, quando os marinheiros notaram a artimanha do fino gatuno. Foi um pega
num pega, uma correria danada pelo convés do navio, até que o acuaram na
amurada. Depois deste costado de ferro rugia a imensidão do mar, estava pego,
pensaram os marujos. Ele não teria coragem de pular. Pulou!
Mergulhou na imensidão do Oceano
Atlântico sem o mínimo de medo, pois sabia que a sua vida já estava como a
brisa do mar, sem rumo, sem prumo e nada mais faria diferença. Mas subiu pelas
cordas que lhe jogaram, talvez percebendo que o mar é quem rouba, nunca é
roubado.
Já na terra natal
arrumaram-lhe um emprego: varrer os capuchos de algodão que ficavam espalhados
pelo chão da Algodoeira. A primeira coisa que sumiu foi o dinheiro das vassouras!
Aqui encontrou o ambiente ideal de praticar as suas estripulias, pois logo fez
amizades com o Chico Lau, O Louro Guaraciaba, o Joaquim da Romana e o grande
sócio Luiz Cabeleira, que guardava os frutos diários dos furtos.
Muitos autores consagrados escreveram
bons livros como: A arte da Guerra, a Arte da Sedução, a Arte de Falar, a Arte
de Amar... Mas somente um escreveu, primorosamente, nas páginas do próprio
corpo, a arte da fuga: o memorável gatuno Antônio Vieira, mais conhecido por
Cerinha!
A polícia crateuense cansou de
jogá-lo nas solitárias masmoras, na escuridão do Cara-Preta, num xadrês
apertadíssimo chamado de O Litro, onde ficava totalmente nú, com o chão
completamente molhado e ele cinicamente dizia: - Ôpa! Ainda hoje eu fujo daqui!
O Litro prá mim é sopa...
O Sgt Holanda foi quem o
apelidou, ao vê-lo com as costas grudadas num canto de parede, subindo como uma
lagartixa, as mãos e os pés grudando e desgrudando com uma força adesiva das
melhores ceras que existem. Os soldados ficavam boquiabertos com a capacidade
de fuga do Cerinha. Conseguira fugir facilmente até da Colônia Agropastoril do
Amanari, em Maranguape.
Quando “hospedado” na Cadeia
Pública de Crateús, no fim de tarde, as alunas da Madre Palmeiras, do Patronato
Senhor do Bonfim, todas com uma blusa branca e uma gravatinha azul gravada as
letras PSB, iam visitar o Cerinha. Algumas levavam cigarros e até ofereciam
bombons. Certo dia cerinha entra pelo teto de uma residência, já marcada para
um roubo. Dizem que, antes de descer, silenciosamente, eles defumavam todo o
ambiente com o perfume da cannabis sativa,
para fortalecer o sono dos dorminhocos. Cerinha reconhece a aluna que lhe
oferecia brindes e ordena aos companheiros: — Nesta casa não vamos roubar!
Vamos só ver o que deixaram de bom prá gente, na geladeira!
No dia em que prenderam Luiz
Cabeleira, o afoito gatuno Cerinha resolveu soltá-lo! Pois amizade verdadeira
não quer saber de defeitos ou de qualidades. Até as sombras da noite dormiam, depois
que apagaram os lusco-fuscos dos postes. Errou o local da cela e destelhou foi
o aposento do perverso e tarado Manoel da Lindaura, que de burro e tolo ainda
alertou os soldados. E o Povo dizia: O Cerinha é mais liso que sabão! Novamente
fugiu.
Por toda redondeza dos sertões
corria a fama do larapio crateuense: Em Juazeiro do Norte, em São Benedito, em Fortaleza...
Em todas elas, com o consentimento da noite, ele furtou!
Tenho a impressão que as
paredes da Cadeia Pública de Crateús sentem saudades desde o dia em que ele
fugiu pela última vez, e não mais regressou.
Dizem que colocaram um ponto
final no seu interminável livro de histórias de fugas.
Dizem que ele se enfadou de
tantas facilidades em fugir das prisões do Ceará que rumou para outras
aventuras e hoje se encontra muito bem de vida, numa velhice honesta, lá para o
lado de Salvador, onde seu xará Pe. Antonio Vieira tanto pregou em prol da
dignidade e da honradez do povo brasileiro e que em meu insignificante julgar,
que nunca aprendemos!
Mas, como Cerinha que voltou
para salvar o velho amigo, volto também atrás em minha opinião, quando me
lembro das palavras do grande gênio do Barroco brasileiro: “Quando julgamos aos
outros, condenamos a nós mesmo”
Mesmo assim, sinto uma danada nostalgia
de quando os ladrões do nosso surripiado Cratheús eram do tipo do mito chamado Cerinha!
Raimundo Cândido
Silas Falcão disse...
Raimundo Cândido, cabra bom de escrita, parabéns por esta belíssima crônica. Criança na minha inesquecível Rua da Cruz, relembro o medo justificado do meu pai, Pedro Severino, quando colocou olhos noturnos escondidos em frente a nossa casa da rua citada para vigiar a chegada do Cerinha, que anunciou para todos os ouvidos da nossa rua que roubaria a casa do Pedro Severino. Durante noites insones o vigia esperou em sua tocaia silenciosa, mas o Cerinha não apareceu para cumprir o prometido. Crianças, ouvimos muitas historias das peripécias inteligentes e habilidosas do Cerinha. Não resta dúvida que ele era um ladrão incontido nas prisões e que passou por Crateús espalhando medos nos anos 60-70. Não sabia que ele vive. Muito boa esta sua pesquisa, amigo cronista. Outra vez, parabéns.
Silas Falcão disse...
Raimundo Cândido, cabra bom de escrita, parabéns por esta belíssima crônica. Criança na minha inesquecível Rua da Cruz, relembro o medo justificado do meu pai, Pedro Severino, quando colocou olhos noturnos escondidos em frente a nossa casa da rua citada para vigiar a chegada do Cerinha, que anunciou para todos os ouvidos da nossa rua que roubaria a casa do Pedro Severino. Durante noites insones o vigia esperou em sua tocaia silenciosa, mas o Cerinha não apareceu para cumprir o prometido. Crianças, ouvimos muitas historias das peripécias inteligentes e habilidosas do Cerinha. Não resta dúvida que ele era um ladrão incontido nas prisões e que passou por Crateús espalhando medos nos anos 60-70. Não sabia que ele vive. Muito boa esta sua pesquisa, amigo cronista. Outra vez, parabéns.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirRaimundo Cândido, cabra bom de escrita, parabéns por esta belíssima crônica. Criança na minha inesquecível Rua da Cruz, relembro o medo justificado do meu pai, Pedro Severino, quando colocou olhos noturnos escondidos em frente a nossa casa da rua citada para vigiar a chegada do Cerinha, que anunciou para todos os ouvidos da nossa rua que roubaria a casa do Pedro Severino. Durante noites insones o vigia esperou em sua tocaia silenciosa, mas o Cerinha não apareceu para cumprir o prometido. Crianças, ouvimos muitas historias das peripécias inteligentes e habilidosas do Cerinha. Não resta dúvida que ele era um ladrão incontido nas prisões e que passou por Crateús espalhando medos nos anos 60-70. Não sabia que ele vive. Muito boa esta sua pesquisa, amigo cronista.
ResponderExcluirOutra vez, parabéns.
Essa crônica me fez lembrae da história de Cabano, um conterrâneo craque da bola, porém, dado a arte de surrupiar o alheio, que veio aqui para Porto Alegre transferido para o Presídio Central, de onde era retirado para atuar no Grêmio Esportivo Renner nos dias de jogo, chegando a ser convocado para a Seleção Gaúcha e parece que também esteve no Vasco da Gama, do Rio de Janeiro.
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