quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Cerinha, O Mito.

                                                  
           Diz uma lenda que o “estalo” que houve na cabeça do menino Antonio Vieira serviu para torná-lo um dos maiores oradores da Companhia Jesus, o gênio do Barroco brasileiro. Publicou mais de 200 sermões e um calhamaço de umas 700 cartas. Quando em Lisboa, no púlpito da Igreja da Misericórdia, perante Dom João IV, um fidalgo baixinho, gordo, feio, com as pernas cheias de perebas, seguido por uma bajulenta Corte, o Pe. Antônio Vieira disparou o verbo contra os corruptos acompanhantes de sua Majestade: — Antigamente, quem andava ao lado dos Reis eram os Laterones, nobres de coração! Hoje, corrompeu-se o vocábulo e os acompanhantes, chamam-se de latrones! Foi um dos maiores discursos do famoso Pe. Vieira, antes que aquela contagiosa Corte viesse se esbaldar no Brasil, infelizmente. Chamou-se o Sermão do Bom Ladrão, embora na Bíblia a gente não encontre uma citação sequer, sobre um ladrão bom. E continuou o Padre, incisivo: — Quantas vezes se viu Portugal a enforcar um ladrão de galinha e, no mesmo dia, elevar ao triunfo um Governador, por ter roubado uma província?  
Em tempo algum, um discurso antiguíssimo foi tão atual!
No Brasil, do Oiapoque ao Chuí, nunca se roubou tanto! Na quase totalidade dos 5570 municípios o modus operandi da ladroagem é o mesmo, numa criatividade e imaginação insuperáveis para o resto do mundo: Licitações viciadas, desvios de verbas legalizadas, tarifas astronômicas, taxas abusivas que matam o cidadão e a Lei fazendo com que “Fichas Sujas” fiquem limpas como o milagre da água em vinho, através de acordos escusos e indecentes embargos infringentes. Noutro Civilizado Mundo, dizem: No Brasil, o povo é bobo!
O destemido Pe. Antônio Vieira, com o dedo em riste, concluiu ao pronunciar, lentamente, cada palavra como uma punhalada sem misericórdia na consciência desavergonhada e incrédula da platéia: — Basta, senhor, que eu, porque roubo uma galinha, sou ladrão, e vós que rouba descaradamente da força pública, sóis Governador?
Ouçam... A voz de Vieira ainda retumba no ar!
No ano de 1952, no Distrito de Nova Russas, numa das grandes seca dos Sertões de Cratheús, ouviu-se o choro de mais uma criança que nascia na prole, já numerosa, de Dona Maria e do senhor José Henrique do povoado de Rosário. Era o menino Antônio Vieira, que foi adotado pela caridosa Lili Rosa, compadecida daquela precária situação familiar, e resolve levá-lo para o Rio de Janeiro. Poderia ter sido um benévolo padre, com a aptidão do Paiaçu Vieira dos indígenas brasileiros, se a sorte assim o quisesse. Não quis! Desde cedo a criança foi mostrando uma propensão natural para pegar o que não lhe era devido. Um brinquedinho de um amigo, um lápis, uma borracha de um colega no colégio e a coisa foi ficando séria. Tão séria que aos onze anos pegou seu primeiro xilindró!
Os vizinhos o tinham na conta de fino larápio e a polícia já o amaciara, por diversas vezes, com uns “leves carinhos” de um cassetete.  No Rio de Janeiro desenvolveu a arte e a técnica de surrupiar como os gatos, de subtrair furtivamente, imperceptível como se invisível fosse. Roubou até a quem o ajudou!  
As inúmeras tentativas de correção e a paciência de Dona Lili para entender o descaminho daquele menino, já chegaram ao limite. Ele dizia que alguma coisa o impelia a roubar, como um “Estalo de Viera” invertido, uma compulsão enorme para furtar o dominava. Acorrentaram-no, inúmeras vezes, como a um animal perigoso no quintal e nada adiantou!  Mal se via livre das amarras, os roubos começavam na redondeza.
A solução foi mandá-lo de volta para Cratheús, aproveitando uma viagem de navio de Madrinha Francisca Rosa que se encontrava na Cidade Maravilhosa. Torrou o dinheiro da digníssima professora no bar da embarcação, e já surrupiara as reluzentes talheres de prata, quando os marinheiros notaram a artimanha do fino gatuno. Foi um pega num pega, uma correria danada pelo convés do navio, até que o acuaram na amurada. Depois deste costado de ferro rugia a imensidão do mar, estava pego, pensaram os marujos. Ele não teria coragem de pular. Pulou!
Mergulhou na imensidão do Oceano Atlântico sem o mínimo de medo, pois sabia que a sua vida já estava como a brisa do mar, sem rumo, sem prumo e nada mais faria diferença. Mas subiu pelas cordas que lhe jogaram, talvez percebendo que o mar é quem rouba, nunca é roubado.
Já na terra natal arrumaram-lhe um emprego: varrer os capuchos de algodão que ficavam espalhados pelo chão da Algodoeira. A primeira coisa que sumiu foi o dinheiro das vassouras! Aqui encontrou o ambiente ideal de praticar as suas estripulias, pois logo fez amizades com o Chico Lau, O Louro Guaraciaba, o Joaquim da Romana e o grande sócio Luiz Cabeleira, que guardava os frutos diários dos furtos.
Muitos autores consagrados escreveram bons livros como: A arte da Guerra, a Arte da Sedução, a Arte de Falar, a Arte de Amar... Mas somente um escreveu, primorosamente, nas páginas do próprio corpo, a arte da fuga: o memorável gatuno Antônio Vieira, mais conhecido por Cerinha!
A polícia crateuense cansou de jogá-lo nas solitárias masmoras, na escuridão do Cara-Preta, num xadrês apertadíssimo chamado de O Litro, onde ficava totalmente nú, com o chão completamente molhado e ele cinicamente dizia: - Ôpa! Ainda hoje eu fujo daqui! O Litro prá mim é sopa...
O Sgt Holanda foi quem o apelidou, ao vê-lo com as costas grudadas num canto de parede, subindo como uma lagartixa, as mãos e os pés grudando e desgrudando com uma força adesiva das melhores ceras que existem. Os soldados ficavam boquiabertos com a capacidade de fuga do Cerinha. Conseguira fugir facilmente até da Colônia Agropastoril do Amanari, em Maranguape.
Quando “hospedado” na Cadeia Pública de Crateús, no fim de tarde, as alunas da Madre Palmeiras, do Patronato Senhor do Bonfim, todas com uma blusa branca e uma gravatinha azul gravada as letras PSB, iam visitar o Cerinha. Algumas levavam cigarros e até ofereciam bombons. Certo dia cerinha entra pelo teto de uma residência, já marcada para um roubo. Dizem que, antes de descer, silenciosamente, eles defumavam todo o ambiente com o perfume da cannabis  sativa, para fortalecer o sono dos dorminhocos. Cerinha reconhece a aluna que lhe oferecia brindes e ordena aos companheiros: — Nesta casa não vamos roubar! Vamos só ver o que deixaram de bom prá gente, na geladeira!
No dia em que prenderam Luiz Cabeleira, o afoito gatuno Cerinha resolveu soltá-lo! Pois amizade verdadeira não quer saber de defeitos ou de qualidades. Até as sombras da noite dormiam, depois que apagaram os lusco-fuscos dos postes. Errou o local da cela e destelhou foi o aposento do perverso e tarado Manoel da Lindaura, que de burro e tolo ainda alertou os soldados. E o Povo dizia: O Cerinha é mais liso que sabão! Novamente fugiu.
Por toda redondeza dos sertões corria a fama do larapio crateuense: Em Juazeiro do Norte, em São Benedito, em Fortaleza... Em todas elas, com o consentimento da noite, ele furtou!
Tenho a impressão que as paredes da Cadeia Pública de Crateús sentem saudades desde o dia em que ele fugiu pela última vez, e não mais regressou.
Dizem que colocaram um ponto final no seu interminável livro de histórias de fugas.
Dizem que ele se enfadou de tantas facilidades em fugir das prisões do Ceará que rumou para outras aventuras e hoje se encontra muito bem de vida, numa velhice honesta, lá para o lado de Salvador, onde seu xará Pe. Antonio Vieira tanto pregou em prol da dignidade e da honradez do povo brasileiro e que em meu insignificante julgar, que nunca aprendemos!
Mas, como Cerinha que voltou para salvar o velho amigo, volto também atrás em minha opinião, quando me lembro das palavras do grande gênio do Barroco brasileiro: “Quando julgamos aos outros, condenamos a nós mesmo”
Mesmo assim, sinto uma danada nostalgia de quando os ladrões do nosso surripiado Cratheús eram do tipo do mito chamado Cerinha!

Raimundo Cândido

Silas Falcão disse...
Raimundo Cândido, cabra bom de escrita, parabéns por esta belíssima crônica. Criança na minha inesquecível Rua da Cruz, relembro o medo justificado do meu pai, Pedro Severino, quando colocou olhos noturnos escondidos em frente a nossa casa da rua citada para vigiar a chegada do Cerinha, que anunciou para todos os ouvidos da nossa rua que roubaria a casa do Pedro Severino. Durante noites insones o vigia esperou em sua tocaia silenciosa, mas o Cerinha não apareceu para cumprir o prometido. Crianças, ouvimos muitas historias das peripécias inteligentes e habilidosas do Cerinha. Não resta dúvida que ele era um ladrão incontido nas prisões e que passou por Crateús espalhando medos nos anos 60-70. Não sabia que ele vive. Muito boa esta sua pesquisa, amigo cronista.  Outra vez, parabéns. 

3 comentários:

  1. Raimundo Cândido, cabra bom de escrita, parabéns por esta belíssima crônica. Criança na minha inesquecível Rua da Cruz, relembro o medo justificado do meu pai, Pedro Severino, quando colocou olhos noturnos escondidos em frente a nossa casa da rua citada para vigiar a chegada do Cerinha, que anunciou para todos os ouvidos da nossa rua que roubaria a casa do Pedro Severino. Durante noites insones o vigia esperou em sua tocaia silenciosa, mas o Cerinha não apareceu para cumprir o prometido. Crianças, ouvimos muitas historias das peripécias inteligentes e habilidosas do Cerinha. Não resta dúvida que ele era um ladrão incontido nas prisões e que passou por Crateús espalhando medos nos anos 60-70. Não sabia que ele vive. Muito boa esta sua pesquisa, amigo cronista.

    Outra vez, parabéns.

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  2. Essa crônica me fez lembrae da história de Cabano, um conterrâneo craque da bola, porém, dado a arte de surrupiar o alheio, que veio aqui para Porto Alegre transferido para o Presídio Central, de onde era retirado para atuar no Grêmio Esportivo Renner nos dias de jogo, chegando a ser convocado para a Seleção Gaúcha e parece que também esteve no Vasco da Gama, do Rio de Janeiro.

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