sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Os Sapateiros


O poeta Pablo Neruda não exagerou no lírico romantismo quando declamou para a amada: “Quando não posso contemplar teu rosto contemplo teus pés... Amo teus pés só porque andam sobre a terra, sobre o vento e sobre a água até me encontrarem” A queridinha do autor de “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada” devia ter um bom par de mocassins, e de couro de búfalo, para poder andar com destreza sobre esses elementos naturais. Os inspirados poetas bem sabem que elas, as amadas exigentes, dão mais valor a uma coleção de pares de sapatos do que uma boa composição de devaneio amoroso. Para serem realmente eficientes, os versos de hoje, devem vir acompanhados de uma vistosa caixa de sapatos!
Desde que o homem pré-histórico aprendeu a arte de curtir o couro, raspando a carne, a gordura e os pelos, para não apodrecer, que surgiram os primeiros sapatos. O Faraó Tutancâmon andava, elegante, com uma sandália de couro toda ornada de ouro. Na Antiga Roma, os Cônsules desfilavam com sapatos brancos, os Senadores com uns marrons com tiras entrançadas até a batata da perna e Legionários usavam botas de cano curto, com os dedos a descobertos. A manufatura industrial só surgiu na Inglaterra, e por necessidade dos exércitos que iam às guerras.
A novidade do ramo calçadista, na cidade de Cratheús, acontecia na Sapataria União do Senhor Edmundo Pinto. As caixas brancas de sapatos, que vinham de Sobral pelo Trem “Maria Fumaça”, ficavam nas prateleiras das duas paredes laterais e logo se esgotavam, mas um modelo novo era reproduzido pelos sapateiros que ficavam no fundo da loja, para atender aos inúmeros clientes: o Chico Rodão, o Luiz Potássio, um cabra bom de bola, o Fenelon e o esperto Cerinha, que além de sapateiro era cobrador de aluguel das casas do comerciante Norberto Ferreira. Além disso, Cerinha ganhou o apelido de “O Meia-Noite” por rondar as escuras esquinas da cidade, sempre nas horas tardias, curiando as atividades dos cálidos casais de namorados.
O município, com uma pecuária razoável, se desenvolveu pelo Ciclo do Couro e deste material fabricava-se quase tudo que era necessário para a sobrevivência do sertanejo. Os rapazes aprendiam a arte de celeiro e, também, de sapateiro transformando a pele curtida do gado em gibões, celas, cordas, canecos de sola e em chinelas de currulepe. Era uma tradição, de pai para filho, que só era interrompida pela chegada das secas intensas, que dizimavam os rebanhos. Era quando os jovens migravam, nas estradas já marcadas pelos seus antepassados, rumo à ilusão de São Paulo ou nas trilhas dos soldados da borracha, para um desconhecido Amazonas.
A Dona Marica, esposa do rico Cel. Chico Leite, das Queimadas de Novo Oriente, tinha chegado da banda do Norte e estava precisando de um chinelo novo, as alpargatas que tinha nos pés estavam gastas e remendadas. Aproveitou a presença do Senhor João Claudino da Silva, que estava a trabalhar no alpendre de sua casa, e perguntou:
- Seu João, o senhor sabe fazer chinelo de couro?
- Sei sim, Dona Marica. Vou fazer o seu chinelo, é só terminar o serviço desta empreita com o Dr. Chico Leite, aqui no alpendre.
O artesão João Claudino tirou as medidas do pé de Dona Marica, 34/35, riscou o couro curtido, desenhando o molde do pé com uma “costa” de madeira, cortou com uma faquinha bem amolada, fez o cabresto com uma tira de couro bem mais fina, bateu as pontas das tachinhas e desenhou no rosto umas figuras que aprendera com seu velho pai, nos tempos de outrora.
- Está pronto Dona Marica. Aqui está seu par de chinelos.
A senhora põe os calçados nos pés e fica admiranda com a obra de arte.
- Corre aqui, Chiquinho, vem ver que coisa interessante é esse chinelo que Seu João fez para mim! Olhe como esses desenhos são iguaizinhos àqueles que o Seu Vicente Manco fazia, lá em Manaus!
- Pois num é, Marica. É o mesmo tipo de chinelo, até parece do mesmo molde!
O Senhor João Claudino atento àquelas observações, arregalou bem os olhos, demonstrando um evidente contentamento no rosto.
- Meus amigos, me digam uma coisa, como é mesmo a aparência deste tal Vicente Manco, de quem vocês falam?
- Ele até parece muito com você, Seu João! Respondeu a esposa do Cel. Chico Leite.
- Pois esse sapateiro é meu irmão, dona Marica. A voz alta demonstrava uma alegria incontida.    - É o meu irmão Vicente Claudino, sim, que foi embora para o Norte fugindo da seca e da fome que por aqui dizimou quase tudo. Eu vi quando ele caiu de um burro e ficou mancando de uma perna. E nós aprendemos a fazer chinelas e a trabalhar com couro com o nosso pai. Aprendemos tudo direitinho como ele nós ensinou.
As lágrimas já escorriam pelo rosto de João Claudino que não suportara tamanha satisfação, tão grande coincidência. Achava que seu irmão, que há décadas não mandava notícias, desde a época que arribara para os perigos de uma Amazônia desconhecida, estava morto. Imaginava que tinha sido devorado pelos animais, que fora abatido pelas flechas dos índios selvagens.
- Seu João, agora o senhor pode se comunicar com ele. Nós temos o endereço de uma bodega, de onde comprávamos mantimentos, e seu irmão também se abastecia por lá.
E o contato entre os irmãos Claudinos foi refeito, como que pelo cabresto de um chinelo ligando Cratheús ao distante coração da Amazônia, a histórica cidade de Manaus!
O conhecido alerta “Sapateiro não vá além de tuas sandálias!” uma vez transposto pelo Vicente Manco, quando, expulso pela fome, rumara em busca de sobrevivência no distante Amazonas, até lembra a história dos irmãos sapateiros Crispim e Crispiniano, que, mesmo separados pelo Império Romano sempre acabavam juntos, até depois de decapitados.
As coisas de Deus são perfeitas. Com uma simples sandália nos pés, é suficiente uma longa marchinha para nos perdermos, e isso após a dolorosa tristeza das despedidas e basta mais uns poucos passos, adiante, para nos abraçarmos na alegria dos reencontros. E, depois da coincidência dos irmãos sapateiros, encontrarem-se de novo, em pleno sertão de Novo Oriente, através de um providente par de chinelas de currulepe, o velho lema de alerta mudou, e é assim que se deve dizê-lo agora: “Sapateiro, algumas vezes, é necessário que se vá muito além dos nossos sapatos!”


Raimundo Cândido

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