O poeta José Coriolano começa
um dos seus versos assim: ”Há na minha província uma ribeira, / Um sertão, onde
eu vi a vez primeira / Sorrir-me da existência a doce luz: / Tem o nome da
tribo que o habitava, / Quando ao rude tapuia entregue estava, / Esse nome, sabei-o,
- Cratheús.”
Foi no grande Vale dos Sertões de Kara- thi-us
que o brutal bandeirante português Domingo Jorge Velho, no começo do século XVIII,
implantou a criação extensiva de bois, à solta, pelas imensidões sem cercas das
margens do Rio Poti, motivo pelo qual começaram os sanguíneos conflitos entre
os silvícolas e os colonos. Os coitadinhos dos índios não tinham a menor noção do
direito à propriedade. Os Tapuias eram fortes, semblantes ameaçadores, corriam
iguais a feras, indomesticáveis, irredutíveis, mas só possuíam uns simplórios
arcos e flechas contra os bacamartes cuspidores de fogo dos “conquistadores”. Ou
deixavam a condição de índio hostil, ou eram sumariamente exterminados! E
muitos preferiam à morte a serem pacificados, pois ser índio é um estado de
espírito, é um modo de ser, é algo rígido e que é invisível aos olhos.
Um dos últimos conflitos entre
os pecuaristas e os índios no Vale do Poti ficou conhecido como o Massacre da
Furna dos Caboclos e aconteceu na região do Distrito de Montenebo, no sopé da
grande Serra Azul. O fazendeiro José de Barros,
dono da propriedade Bebida Nova, notou que os seus animais estavam sumindo e
descobriu que os mesmos vinham sendo caçados pelos índios que dormiam numa
furna na vertente da Serra. Então, tramou um ardil bem perverso. Mandou um
caçador conquistar a confiança dos índios e, em determinada noite, este cortou
as tiras de todos os arcos, dando sinal para que os homens de Zé de Barros atacassem,
eles entraram na caverna exterminando homens, mulheres e crianças que ali se
encontravam e ateando fogo em tudo. Milagrosamente uma criança escapou pela boca
da furna, ganhou à Caatinga, passando a viver no meio do mato, como fera e um
dia foi pego, com ajuda dos dentes dos cachorros de caça. A criança se tornaria
a senhora Jovelina Barata, bisavó do índio potiguara Mariano Barata, que deixou
muitos descendentes no bairro da Maratoan.
Na localidade de Lagoa dos Neres,
na cidade de Novo Oriente, existe a Associação do Povo Potiguara. E é
registrada na FUNAI como a Lagoinha dos Potiguaras. Numa época, de um passado
não muito distante, o famoso Pe. da Varginha em brigas por terras com o tal de Antônio Bento, numa feroz guerra de cangaceirismo,
expulsara os potiguaras das redondezas. Antes, porém, quem tangeu os índios de
lá foi a cruel seca de 32. Procuravam escapar da dura estiagem cearense nas
terras amenas do Piauí. A Dona Nazaré, uma líder, curandeira, parteira e
possuidora de poderes espirituais, acampa a turma de retirantes, debaixo de uns juazeiros, para alimentação e descanso. E, quando
resolve prossegui, descobre que está faltando a sua filha Gonçala. A procura é
incansável, muitas rezas fortes e, depois de três dias de desespero, acham um
caçador e rastreador que os ajudam na busca. O pai da menina sobe nas árvores e
grita a todo pulmões: - Gonçaliiiiiinha!!! Em determinado momento ouvem uma vozinha,
já sem força, em resposta – Estou aqui meu pai! Ao se dirigirem para o local em
que estava a criança notam as pegadas da onça que se cruzam com o rastro da
menina, e o feroz animal, por algum motivo, não pôde encontrar a sua presa!
Nestas viagens, de desespero, alguns morreriam de fome ou de sezão braba, com
febres altas e coceiras pelo corpo.
Gonçala, sempre sob a proteção
de Nazaré, teve de fugir outras vezes para o Piauí, tangida pelas secas. E, já
mulher feita, casada, vem morar em Crateús, trazendo Helena, Nonato, Miguel e
Raimunda, seus filhos. As duras lutas pela sobrevivência e os tempos ruins os
perseguem impiedosamente. A sequência de anos: 1979 / 80 /81 / 82 e 83 mostra-se
mais perversa do que quando fugiam para o Estado vizinho. No Grito da Seca, o
ano de 1983, a Helena já com filhos para criar, alista-se no Bolsão da Santa
Fé. Tem que levar latas d’água de 18 litros na cabeça para a construção da
parede de um açude. Foi quando o Pe. Afredinho a convidou para ir à Igreja de São
Francisco.
– Esta Senhora magrinha, de touca na cabeça,
venha aqui para cima! O sacerdote a convoca para assistir à missa ao seu lado e
no altar. O Pe. Alfred Kurtz dormia oito dias seguidos na casa de um pobre sofredor
do bolsão, como pernoitara muitas vezes na casa de Dona Helena. Um dia teve que
escolher um, entre os trabalhadores que lhe hospedara, para relatar o modo de
vida e a resistência dos pobres de Cratheús num retiro em que estava nada menos
que Dom Helder Câmara. Colocam os nomes de 15 pessoas numa sacola e pedem para
retirar um, e deu o de Dona Helena. Alguém, enciumado, protesta. Isso não é justo,
essa senhora raramente vai à missa e quase nunca está ao lado dos padres, lhes
fazendo mesuras. Outro sorteio e novamente o nome da tapuia-potiguara é
escolhido. Quando não estava estudando – Alfabetizou-se pelo Mobral, concluiu o
Normal no Colégio Regina Pacis e fez um curso especial de Licenciatura para o
Magistério Indígena - estava ajudando a Dona Nazaré, na Rua Júlio Lima, em
frente a um altar de madeira, realizando curas, preparando banhos ou entoando orações:
“Meu cordão é de ouro / Minha medalha é de prata / Se eu não me engano / quem
chegou foi João da Mata / Eu baiei na mata / Na mata eu baiei / E na mata
ninguém me viu...” Via muitas vezes, a
qualquer hora do dia ou da noite, a avó cruzando os braços em frente do corpo,
balbuciava a oração secreta de Santa Margarida, a mais popular entre as
parteiras, e partia para pegar mais uma criança que nascia no mundo.
Dom Fragoso, bispo de Crateús,
oferece como prêmio pelo esforço de Dona Helena uma viagem à cidade de Tefé, na
Amazônia, para especializar-se na cultura indígena, ela preferiu conhecer os
Tremembé de Almofala, em Itarema, e a bonita luta por suas terras.
Era missão de guerreira
indígena, Dona Helena, como foi a da índia Joana em derrubar as cercas que o violento
Major Pe. da Varginha levantava, reerguer a cultura do povo Kara-thi-us, reeducar
as crianças índias crateuenses e brigar pelas terras que eram suas, desde o descobrimento do Brasil.
Foi preciso convidar alguns dos
grandes especialistas em línguas indígenas do Brasil, como Professor Pinheiro,
Dr. Gilvan Muller e a Dra. Marinalva Vieira Barbosa. Requisitaram-se, de
Portugal, as Cartas das Sesmarias e constatou-se, até linguisticamente, uma
grande herança indígena na ribeira do Poti, identificando as etnias espalhadas
por aqui, Tupinamba, Kariri, Tabajara, kalabaça e Potiguara. O caminho para o
reconhecimento e recuperação da história indígena estava iniciado.
Existem, atualmente, duas
comunidades indígenas no município de Cratheús, totalizando 5900 ha, que são as
aldeias de Nazário, no topo da Serra da Ibiapaba e a de Mambira, no sopé da
mesma serra, onde o cacique Renato Potiguara, filho de Dona Helena, é o chefe.
Na primeira escola indígena do
Brasil a educação era pautada no princípio da catequização, orientada pelos
missionários jesuítas. Hoje, na Escola Indígena Raízes de Crateús, com 380 alunos,
o resgate da cultura vem sendo feito na mente das criancinhas para que o
passado, que um dia tentaram destruir, volte a brotar novamente, vigoroso e
florido.
Dona Maria Helena Gomes circula
pelo pátio da sua Escola comprovando que as coisas andam por si e as mil
maravilhas. Os alunos que não estão na
sala de aula fazem as atividades de reforço nas Potiocas, umas cabaninhas de
palhas, outros recebem instruções na roça de milho e de feijão ou no canteiro
de hortaliças que ficam ali, ao lado. É um colégio que além de ensinar para a
vida, mostra, realmente, o significado de liberdade e felicidade!
Uma
reaprendizagem com o passado, numa rica experiência como a nos dizer: “Quando
vieram, eles tinham as fantasias, a Bíblia e nós a terra. E nos disseram, peguem
essas ilusões, fechem os olhos e rezem. Quando abrimos os olhos, nós éramos os
sonhadores com a Bíblia nas mãos e eles os donos das terras.”
A
guerreira Maria Helena muito tem feito
pelo resgate dos valores culturais e da memoria indígena, coisas que
comprovamos no pátio do Colégio em que é a diretora: os alunos alegremente
dançam o Torem, eles pulam, eles cantam em louvor à vida, agradecendo a
natureza, na antiga língua dos tapuias, como a dizer: Vocês cortaram nossos
galhos, nossos trancos, mais se esqueceram de arrancar as nossas raízes, e elas
brotaram. E aqui estamos, de pé!
A
todos os Karatis que tombaram defendendo as terras do Vale do Poti, sem se
curvarem ao vil invasor e àqueles que trazem na alma e no sangue a intrepidez índia
e o enorme valor silvícola, dedico minha admiração e meu louvor!
Raimundo Candido
Raimundo memória,
ResponderExcluirCândido resgate,
não deixa nunca de registrar
estas histórias
que se transmitem oralmente
através de tempos tão distantes.
Recentemente conheci Dona Helena e o Cacique Renato, pessoas admiráveis à frente da comunidade Potyguara de Crateús. A Escola Indígena é um lugar muito especial também!!
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