As horas vão passando, sem
pressa. Um redemoinho ergue poeira no ar e baila ensandecido, sem rumo, pelo
chão do vilarejo quase desabitado. Ao longe, uma cabra bale, triste, nos reclamos
lastimosos da fome. Imperceptíveis lágrimas escoam das janelas nas casas
envelhecidas, como doloridas estampas em ruínas. Oiticica, um lugar perdido no
tempo, onde a melancolia induz ao devaneio, à meditação e a saudade que machuca
a alma da gente. Lugar onde, um dia, a
alegria reinou e, hoje, até o sorri é desolador, mas não foi sempre assim!
No longínquo Distrito de
Oiticica, isolado do burburinho de Cratheus, na extrema com o Estado do Piauí,
todo domingo era dia de festa, mas também de muito trabalho. Debaixo de um
poético pé de Benjamim, que mais parecia um enorme guarda-chuva aberto ao tempo,
já se encontravam alguns sertanejos que aguardavam a chegada do Trem da
Ibiapaba. O trem de Veraneio dos funcionários da RVC, do 4º BEC e de alguns
crateuenses privilegiados. Na realidade, a sombra da grande figueira,
funcionava como o mercado local. Ali já
estão expostas as mercadorias que serão vendidas aos passageiros do apressado Trem
Domingueiro: Cestas com ovos, as galinhas caipiras, os perus, os capotes, os
carneiros, os tatus, os preás e mocós já tratados, a carne do caititu, do
mambira e do veado bem sequinhas, surubins, bico-de-pato, curimatãs, piaus e
todo tipo de peixe que o Portal do Cânion do Rio Poti podia ofertar ao
sertanejo, além de milho verde, feijão, maxixe, melão e de muita melancia, pois
a invernada daquele ano havia sido generosa com o sertão.
O trem partiu às 6 horas da
manhã, da estação de Cratheús, com dois vagões de passageiros e outro para
animais e mercadorias. A velha máquina a óleo, tão vagarosa quanto a antiga
Maria Fumaça, devoradora de carvão, tinha que parar no povoado de Ibiapaba,
para a subida de mais passageiros e para matar a sede do trem na caixa d’água
do Pesqueiro, arrefecendo o calor das engrenagens quentes.
Muitos iam só por diversão,
para admirar, lá do alto do talhado pétreo, o revoo dos socós-boi e das garças,
deslizando sobre o espelho d’água, pelo imenso poço da Vaca Preta e que fugiam
da enorme cobra de ferro que bamboleava paralela ao rio, dependurada no
paredão.
O serrano apura o ouvido
tentando ouvir o truc truc truc das patas do “Fucim de Ferro” e enquanto não
chaga, palestram, numa conversa amena ou invocando as lembranças do passado,
pois, no sertão, recordar é a fornalha de quase toda conversa. Um grupinho de
três cidadãos Deusinho, Faustino e Hipólito, comerciantes do lugar, enquanto
proseiam, ouvem um jegue marcando a hora da chegada do trem, no seu relinchado
estridente.
Ali, perto dos surrões com
farinha, dos sacos de mamonas e de oiticica e das cordas de croá o Luiz Rosa,
um sertanejo de conversa pouca, vaqueiro vigoroso, caçador experiente, fino na
arte de rastreador, pois aprendera com os famosos irmãos Firmino e Floriano
Anjo dos Pereiros, está com umas peles para vender aos compradores que estão
chegando de trem. Desta vez não tem só o couro do caitutu e do mambira não, tem
a pele de uma maçaroca, vermelha do rabo fino, que vinha acabando com as suas
ovelhas e cabras. “Óh oncinha matreira essa, sempre mudando as artimanhas,
enganava até os coitados dos cachorros para poder pegar as criações. Foi a que
me deu mais trabalho de matar. Ela adivinhava as minhas intenções, eu me cansei
de armar tocaias, mas desta vez ela estava cega de tanta fome e se descuidou. O
jirau de madeireira, entre as duas aroeiras velhas, não estava muito alto e a
isca ficou a uns dois metros, ali no chão, eu nem me mexia e mal respirava, mas
ela veio vindo, de mansinho, mal pisava no chão com os dois fachos de olhos
grilados na presa. Atirei. E nunca, na minha vida, eu vi aquilo, por entre o
eito da fumaça de pólvora a pata da onça apareceu e senti só a patada na minha
velha bota, que me protegia das cobra. Mesmo ferida de morte, ela pulou para me
pegar, no breu da noite. Sorte a minha que não errei o tiro!”
Enquanto o Trem da Ibiapaba
não chegava, Seu Luiz Rosa recordava dos bons instantes vividos na Oiticica,
momentos mágicos que faz com que o lugar crie raiz na alma da gente. “No dia em
que o 4º Batalhão se foi, recorda ele, deixou muita coisa de sobra, para os
casacos que construíram a estrada de ferro e que ficaram morando no lugar. Uma
dessas coisas foram as bananas de dinamite, que eram usadas nos cortes dos
morros para a linha férrea passar. Nas pescarias dos Poços do Curtume, que fica
bem depois do Poço dos Pixôcas, onde o rio faz a curva, estávamos pescando com
esses pedacinhos de dinamite. Fiquei em cima de uma pedra alta, só olhando, não
tinha muita experiência com explosivos. O companheiro que soltava as bombas
tomava muito cuidado, até ao pisar nas pedras, para ver se não falseavam,
espantando o peixe. Acendia o pavio e ainda aguardava um instantinho, para a
bomba explodir só na superfície do rio. Depois da explosão ouvíamos o rebuliço
das pedras no fundo do rio, então era só pegar os peixes que subiram, ou
mergulhar para pegar os que ficavam submersos.
Naquele dia, eu vi após a explosão, quando uma
coisa comprida como uma estaca preta de uns seis metros, tentou atravessar o
rio. Estava tonta e não conseguia entrar na locas de pedra, do outro lado. Era
uma sucuri, e foi a única cobra que matamos no leito do Rio Poti, até hoje. O
couro da bichinha foi levado lá para o Estado do Piauí.”
O apito do trem já ecoava no
ar e Seu Luiz agora recordava dos casacos que construíram a estrada, na grande
Seca de 1932, um ano de muito sofrimento, muita fome e muita morte. “Trabalhei
na estrada, e foi só para não morrer à míngua, mas para muitos dos meus
companheiros, era preferível terem morrido de fome mesmo, do que ter pegado
aquela maleita braba que matou muitos cassacos nos acampamentos. Dizem que foi
uma tal Epidemia de Paratifo, por causa da água poluída nas cacimbas onde bebíamos,
primeiro aparecia umas manchas rosadas na pele, dava uma tremedeira de febre tão alta nos coitados dos trabalhadores que eles sentiam
umas dores na barriga horríveis, barrigão estufado, febre alta e se desfaziam num destempero sem fim, até
morrer. Os que faleciam nos acampamentos, eles enrolavam nas redes e eram
jogados nas locas de pedra na margem do rio. Muitos foram enterrados no
cemitério de Oiticica.”
A história do Senhor Luiz Rosa,
que hoje conta com seus 96 verões de labuta diária no sertão, residindo na
Ibiapaba, e ainda exercendo a profissão de coureiro, fazendo todos os
apetrechos para a lida do sertanejo e que finalizava um salabardão de couro,
recheado de croa de frade, para a cangalha de algum animal, é como a própria história
do Distrito de Oiticica, e não cabe num vagão de trem, viajando pelo sertão,
num bucólico dia de domingo. Aquele pequeno homem, agigantado pela experiência
dos anos vividos, lembrou-me dos velhos pés de Oiticicas da ribeira do Poti,
que praticam os comedimentos da resiliência e não cedem ao corromper do tempo,
recusam-se a aceitar a erosão dos ventos e à insensibilidade do olhar humano,
envelhecem exuberante e sem dá o menor sinal de perda no frescor e no viço.
Isso, porque, as árvores, como Senhor Luiz Rosa da Oiticica, são poemas
escritos com o sumo da terra e as lágrimas dos céus.
( PS: Oiticica faz parte do
Município de Cratheús pela Lei lei 448 de 20 de Dezembro de 1938, e que o
tornou um distrito crateuense. O IBGE, uma Instituição Federal, em 2008,
delimitou a linha de fronteira entre o Ceará e o Piauí, linha divisória que foi
adotada até pelo Google Mapas e que podemos visualizar pela internet, mas o
Piauí não quer aceitar, e pretende recorrer. Corremos um sério risco de perder
toda belíssima região de Oiticica!!!)
Raimundo Cândido.
Recolhendo personagens típicos
ResponderExcluire narrativas curiosas de sua região,
este Mundinho, já está a nos dever
a elaboração de um alentado romance.