O Poti é um rio desaguado, um raquítico
rio que pende capenga, desanimado, combalido desde as cabeceiras e que, por
vezes, a piedade divina o avigora com providentes águas que despencam dos céus.
O Poti é um rio exaurido, sem convicção das fluências que determinam aos rios a
correrem para mar. O Poti é de um curso humildemente piegas, de um acanhado e
transitório percurso impelido a orações, impulsionado por rezas, empurrado pela
força de insistentes rogos, desde a época em que os supersticiosos tapuias Karatis
ululavam nas danças de chuvas nas margens ressequidas, implorando a compaixão
de tupã, mas temendo aos raios ferozes e tremendo com pavor dos trovões. Porém,
o desmilinguido Rio Poti sempre escorreu, afoito e afável, para a foz do meu coração!
Sim, eu sou o Poti. O Poti que sofre, o Poti que padece e aflige aos que dele
precisam. Mas, antes de ser o Poti, eu sou o rio de Heráclito, o rio que nunca
é permanente e que sempre muda, só não muda a esperança!
Nunca desejei que as águas do
meu rio fossem súplicas atendidas, ou fossem lágrimas das velas a queimar as mãos
dos fiéis, ou ânsias das procissões que se arrastam pelas ruas poeirentas da
cidade, porém, como sofrido sertanejo, também orei pelas deferidas bem-aventuranças
das torneiras abertas dos céus. E, pelas milenares angústias sofridas, o Poti tornou-se
um rio que facilmente se engana com promessas vãs, traduzindo-se num rio
irrefletidamente ludibriado pelos políticos desavergonhados que enchem a sua
ressequida alma com cegos devaneios. O Poti, um efêmero fluxo pelos Sertões de
Cratheús, é um rio de muitas fantasias! Porém, é a intermitência do meu sangue e,
por isso mesmo, nunca passou de uma mera fábula infantil, de um engodo aquoso
que arrefece o coração!
Mas, engano maior do que a
promessa da construção do Lago de Fronteiras, nas proximidades do povoado da
Ibiapaba, para transformar o eito do sertão num imenso mar de água doce, foi a insensata
jura, ordinariamente vil, em perenizá-lo, e logo na conta do mentiroso,
construindo-se sete barragens até o boqueirão da Ibiapaba. E assim, o Poti foi
dando ouvido às tapeações dos patifes e às lorotas dos ordinários que só
queriam, e continuam querendo, usufruir da inocência dos submissos ribeirinhos.
E na pertinácia de um velho
rio iludido, toma aqui acola, atitude de rio prevenido. Pelos 450 km de tortuosa
extensão, da nascente à foz, vai deixando centenas de poços que remediam a vida,
nas mais variadas formas acostadas às suas margens. Açudes se dispensam por
toda imensa bacia, captando pequenas grotas, represando riachos, inclusive na sua
calha principal, como o Açude Colinas (3 milhões de m3 de líquida veemência), o Açude Flor do Campo
(111 milhões de m3 de vigoroso ânimo), o Açude Carnaubal (86 milhões
de m3 de puro deleite no sertão) e a Barragem do Batalhão (1,5
milhões de m3 de esperanças que nutrem a sede de vida crateuense).
Contudo, uma prolongada estiagem
é suficiente para mostrar a fragilidade hídrica do debilitado Poti. De 2011 a
2017 as chuvas foram tão escassas que se caracterizou um incrível quadro de
perversa seca, completado por um irresponsável desperdício de água pela
população. A construção civil e o desleixo do povo contribuíram para um susto
sem tamanho na Ribeira do Poti. Afigurava-se, lentamente, uma tragédia
anunciada. Em junho de 2013, a cidade de Cratheús entra em crise, não caía uma
gotinha de água nas torneiras. Somente o Açude Flor do Campo, na vizinha cidade
de Novo Oriente, acumulava, em seu bojo, uns 14 milhões de m3, a
única solução, em curto prazo, para o difícil dilema. E a divisão das águas,
que seria uma fácil operação matemática, foi uma drástica atitude política e uma
estupida estratégia de guerra.
Houve um movimento de
resistência contra a transferência das águas para o Açude Carnaubal, correndo a
céu aberto, pelo leito do rio, para socorrer a cidade de Cratheús. Procissões,
missas na parede do açude celebradas pelo Pe. Alexandre e por Dom Odeli José
Magri, Bispo de Sobral, também presentes o representante da Comissão Brasileira
de Justiça e Paz, do Ministério público, na pessoa do Dr. José Arteiro Goiano e
quase toda a população de Novo Oriente, que temia ficar sem água. Resolvem
falar pessoalmente com o intrépido Governador do Estado. O “Comitê pela
Liberação da Água do Açude Flor do Campo Através de Adutora” foi recebido pelo
prepotente e arrogante Gestor Estadual com indelicadeza característica e as pobres
freiras levaram a primeira chicotada, quando afirmaram na presença do chefão:
- Governador, nós estamos
rezando o Cerco de Jericó, pela adutora e contra o desperdício de água!
O Administrador Estadual, Cid
Gomes, retruca, com firmeza:
- Porra de reza! Em pleno
século 21 e esse povo fica perdendo tempo com resmungos e rezas!!!
O comitê do Açude Flor do
Campo ameaçou, em alto e bom tom: “Se o governador mandar abrir as comportas
nós a taparemos e é com seres humanos!” Não houve trombetas de Jericó, nem
muralha humana que desse jeito, quando na madrugada do dia 29 de Junho de 2013,
dezenas de viaturas da polícia ostensiva do Estado, numa operação de guerra,
assegurou a liberação das comportas e as águas do rio correram, fluíram como os
políticos sempre prometeram. Era a perenizarão do velho e alquebrado Poti,
embora só tenham durado 29 dias. Um desperdício de mais da metade dos 7 milhões
de m3 de água potável, para a alegria dos socós, das garças, dos
jacarés, dos cagados, dos sapos, das gias e dos carões que resplandecem nas margens
dos poços, um punhado de Oásis no sertão, entre o Carnaubal e o Flor do Campo.
O Pe. Alexandre, indignado, declarou nos microfones das rádios: - Eles foram
velhacos! Só esperaram dar a hora de ladrão roubar galinha, quando o povo está
no sono pesado, para soltar a nossa preciosa água.
No Distrito de Santo Antônio
dos Azevedos há um poço milagroso que nunca secou, chama-se Poço da Confusão, e
é belíssimo, com sua mata ciliar ainda preservada. Nas piores secas, mesmo as mais
prolongadas, ele forneceu àquele povo santo-antoniense a salvadora água potável
das suas cacimbas. O Confusão transbordou e mandou as águas do Flor do Campo
para o extenso Poço dos Mocós e este derramou-se noutro poço e deste para outro
e outros e foram, assim, tecendo novamente o velho Poti, que há anos não fluía.
Até a alma da escrava Bernaldina, que um dia se enforcou nas árvores copadas da
Mata Ciliar do Poço Confusão, levantou-se de seu túmulo caiado e ficou a
admirar o Poti a correr e a murmurar novamente no leito poeirento, onde só um
vento seco por muito tempo cantava.
Quem viu o Açude Carnaubal
sangrar, despejando um Poti a todo volume, de uma queda d’água de uns trinta
metros, cavada na rocha bruta de seu belíssimo sangradouro, sentiu uma saudade
dolorida ao ver, no inicio de 2015, o fosso do Carnaubal todo furado, mais
esburacado que tábua de pirulito, pelos técnicos da Cogerh, para encontrar
outro Poti subterrâneo, no lençol freático, e poder salvar acidade de Crateús
de uma sede eminente.
Receio que, da nascente até os
blocos de concreto que delimitam a invisível barreira do Lago de Fronteiras,
antes do povoado da Ibiapaba e pelo longo fluxo nos Sertões de Cratheús, o combalido
Poti, exaurido, desmilinguido, sonambule sem ter hora de acordar. E até a astuta
Mãe D’água hiberna, nas pedras da Goela!
Espero que, quando acordarem,
vençam todas as barreiras, triunfem sobre todas as “barragens” e até sobre as imposições
perversas do tempo!
Infelizmente, as previsões
meteorológicas nem sempre são complacentes com o nosso querido rio e já se falam
em mais dias difíceis para os anos vindouros. Mais um ano de seca? Assim não há
Poti que aguente! Ah, os tapuias karatis aqui, para novamente ulularem à Tupã!
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