Na altura do Nº 1737 da animadíssima
Rua Frei Vidal da Penha, cidade de Cratheús, mora uma lenda e se chama Oton de
Melo Nunes, o afiador de facas. Lenda é
a encarnação de uma história fora do comum.
Oton, como uma árvore pertinaz, nunca se encurvou ao aço, ao fogo, às
explosões fortuitas ou a dura luta pela sobrevivência e, hoje, apesar dos estorvos
que aparecem no caminho, não se entrega ao tempo inclemente, mesmo se
envergando pela idade. Quem por ali
passa, presencia um cidadão de 85 anos, alto, magro, sofrido, mas não abatido, persistir
no trabalho duro sentado numa cadeira, com as facas por amolar em cima de uma
mesinha baixa, na calçada de sua residência. Na pedra, já com a face bem escavada,
as facas dos açougues da cidade, e das donas de casa, são afiadas com uma
prática aperfeiçoada e que já virou foi arte. Puxa duas vezes o fio da lâmina,
num ângulo de 30°, inverte a face e depois empurra duas vezes, sempre embebendo
o local com água. Conhece quando está tudo
no gume certo e só no olhar. Uma pena que a tradição de amolador de faca, passando
de pai para filho, esteja chegando ao fim. Observado ali, aquele espetáculo de
amolar peixeiras, imagino como a vida do cidadão Oton Nunes foi afiada pelo
tempo, pelas tantas abrasividades que a vida lhe fez enfrentar.
Um dia, seu pai Agileu
resolveu cavar um cacimbão no quintal de casa, com ajuda de Oton e Zé
Pagão. Já haviam dinamitado umas pedras
e nos 7 metros de profundidade necessitou de mais duas dinamites. Após Cobrir a
boca do cacimbão com tabuas de madeiras, acenderam o pavio. O fogo desceu
rápido no fio do estopim e eles ficaram, de longe, aguardando o bruuuummm da
explosão. Nada. Pensaram que o fogo na corda havia se apagado. Seu Agileu
resolveu descer na escada que ficara dependurada. Oton toma a frente e diz: -
Não pai! Quem vai sou eu! E desceu. Quando chegou pertinho percebeu que o estopim
ainda queimava e faltava uns 20 cm para chegar às dinamites. Não dava tempo
subir, então se dependura entre a escada e a parede, imaginando: “Agora eu
morri!”. A explosão jogou pedras e muita poeira no ar. A mãe, Dona Mosinha, se
desesperou: - Oh meu Deus, o meu filho morreu! Nem bem sentou a poeira, Oton surge
na boca do cacimbão, todo empoeirado, sem nenhum arranhão e dizendo: - Pensei
que ia sair daqui só o bagaço!
Ajudava o pai, todo santo dia,
no açougue dentro do Mercado Central. Às vezes ia ao curral do açougue matar gado
e era bom nisso. Sabia como enfiar o trinchete afiado para cortar o tendão do
cabelouro e o animal caía ali mesmo. Oton e seu amigo Elias Vieira formavam uma
dupla inseparável, como carne e unha, eram os reis da vadiação na Rua Frei
Vidal. Qualquer malfeito que aparecia por lá, logo afirmavam: “Ou foi o filho
do Seu Agileu ou o filho da Donana Vieira.”
Certa vez foram matar uma rés
no Polo Agrícola do Junco e pediram a espingarda socadeira do Sr. Raimundo
Cândido emprestada. Colocaram chumbo
grosso, pólvora e espoleta . Oton acertou o tiro bem no meio da testa do animal
que caiu de “cu trancado”, com eles dizem. Vendo as aves de arribação, que
revoavam aos bandos por ali, revolvem recarregar a espingarda, mas encontram um
cachorro doido pelo caminho. Elias segura a espingarda pelo cano para espantar o
cão quando a arma, acidentalmente, dispara. Os dois ficam feridos e Oton leva
uma descarga de 32 chumbos pelo corpo. Guarda como lembrança desta tragédia
dois caroços de chumbo num dos pulmões e outro encostado na aorta, bem perto do
coração.
Existem pessoas que possuem magnetismo
para atrair acontecimentos infelizes no seu caminho e
Oton, com certeza, é um destes felizardos.
Sua biografia está repleta de fatos marcantes. Haviam matado seu irmão
Airton, numa briga fútil de mesa de bar. Não faltou quem fosse avisar ao seu
Agileu que Moésio, o algoz de seu filho, estava na barbearia do Sr. Luiz Freire,
ali perto. A família Nunes viu a oportunidade de perpetrar uma vingança. Ao
chegarem à barbearia são recebidos na bala e o Oton se joga no chão para se
desviar dos tiros, mas o irmão de Moesio, inesperadamente, sai de trás de uma porta e desfecha 8 golpes
de faca nas costas do Oton. Por sorte o
avião do governador do Estado, Parcifal Barroso, estava por estas bandas e o levou
para Fortaleza, escapando mais uma vez da morte, mesmo tendo perdido muito
sangue.
Há de se pensar que a
existência do nosso personagem foi só de sofrimento e reveses. Mas não, ele era
um bon vivan, trabalhava muito, mas fez o que quis e como quis, não perdia uma
chance de fazer troças e gozar da vida. Bares, cervejas, mulheres e baralhos
rechearam seus dias de alegria. Por ser um espirito brincalhão e inteligente
estava sempre acompanhado de amigos e curiosos para ouvi-lo contar causos,
fazer gestos debochados e demonstrar sua memoria prodigiosa ao recitar a carta–testamento
de Getúlio Vargas, deixando os frequentadores das bodegas do João e do Valmir
de boca aberta: “Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo
coordenaram-se e se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me
combatem, caluniam; e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha
voz ...” Tinha intimidade com todos os baralhos que surgia por ali, conhecia-os
pelas costa. E, com certeza , o que mais gostava era de frequentar os cabarés
da cidade na companhia do amigo Elias Vieira. Uma das mulheres, a Bacana, ele sempre
trazia para a sua república e era quando tudo se acalmava por uns dias. Por
pouco tempo, alias!
A temporada de tranquilidade
só era quebrada quando o estranho poder de atrair fatalidades se ativava. No
bar do Valmir resolvem preparar um tira-gosto num prato de balança, usando
álcool como combustível para o fogo. Era só o que a fatalidade queria: um magote
de bêbados, um vidro de álcool e fogo: mais uma explosão! O Vidro estoura no
corpo do Oton que vira uma tocha humana. Queimaduras de 3° grau fazem com que a
pele das mãos saísse como luvas. Passou 20 dias internado na policlínica do Dr.
Olavo, sendo cuidado pelo afamado enfermeiro Binha.
O levado Oton continua firme
na Rua Frei Vidal da Penha, amolando suas facas e relembrando um passado nada
comum para um simples mortal e o estranho magnetismo vai perdendo seu poder de atrair
fatos marcantes. O filho do Sr. Agileu foi, duramente, amolado pela vida e foi,
incisivamente, afiado pelo tempo que lhe aprimorou a existência longa. Sim, a
lenda Oton, da Rua Frei Vidal, nunca se envergou a nada, porque uma lenda é a
encarnação de uma história fora do comum. A incomum vida de Oton Melo Nunes, o
afiador de facas!
Raimundo Cândido
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