domingo, 22 de maio de 2011

                                                               Metamorfose
A ocorrência do fato foi rápida e espontânea. Mas os avisos, estes chegaram lentos, e vinham enfadonhos, indecifráveis, confusos a começar pelos sonhos. Enquanto dormia, uma sequência de fenômenos lhe ocorria. Aliás, nem era sonho aquela coisa que tomava conta de sua mente enquanto fechava os cansados olhos ao fim do dia. Quase sempre se levantava da rede com a impressão que não dormira, que os mesmos pesadelos o anestesiara, que a agitação noturna ficava cada vez mais pesada, ia aos pouco lhe dominando, tomando conta de seu corpo, circulando pelo seu sangue, insensibilizando seus nervos com uma dormência inexplicável.
O grito não ecoou pela casa quando abriu a boca em desespero naquela inesquecível manhã, clamando por socorro. Não exprimiu um som sequer quando seu rosto aflito notou que seus braços agora eram galhos ramificados agitando-se em pleno ar. Com um aspecto deformante e horrorizado viu suas duas pernas feitas troncos de árvores com raízes bizarras e esgalhadas onde antes eram seus dois errantes pés, não emitiu um ruído, embora tentasse desesperadamente dizer algo com uma inexistente voz.
A súbita mudança ocorreu à noite, enquanto dormia. De repente, suas pernas que incansavelmente empoleiravam-se na escada para execução de seu incansável trabalho de podador de árvores criaram aéreas raízes. Seus braços ágeis com o amolado facão subdividiram-se agora em longos galhos excitados e sem uma única folha. Seu corpo se mostrava encrostado em cinzentas cascas.
A notícia logo se espalhou, pelos quatro cantos do mundo, levada ao vento, de um pé de ouvido ao outro, pois o vento só não leva veloz as dores da fome e da precisão. Vinha gente de toda parte para ver esta transformação de um homem em árvore, a transmutação animal-vegetal como ocorre com alguns malévolos cidadãos que em noites de sexta-feira 13, pela força da lua cheia, viram exaltado lobisomens e saem à procura de crueldade e sangue.
Olhavam inacreditavelmente atônitos para aquela estranha mutação e enfim, alguém disse: - Coitado, está pagando pelo mal que vez. Quantas árvores malvadamente depenou com sua amolada foice, deixando só um liso tronco, sem uma única folha para sua leve respiração, para sua vital fotossíntese. Bem feito!
Alguns, raciocinando mais além, inferiam: - Mas isto não é justo! Ele estava fazendo seu trabalho em busca do pão, para sustentar os filhos. Para haver justiça teria que ser punido também quem mandou fazer o serviço, que se transforme em pedra a mão de quem pagou tal crime!
  Outros, mais presumidos e nem menos versados, aproveitavam a ocasião e teciam filosóficos comentários: - Muitas árvores já arderam como fogueiras em nome de um improrrogável progresso, deram-se um basta neste delito criando-se leis para protegê-las! Agora querem que nossas árvores urbanas se transformem em meros adornos, enfeites vistosos na frente das casas, sem poderem sequer frutificar ou um dia florir, por que não criar leis também em seu auxilio? Assim, não aconteceriam esses castigos aberrantes, que nos impõem os deuses e que estamos vendo agora.
A multidão, que se concentrava ali, via um homem transformando-se em planta, criando casca, expandindo galhos, assentando suas sequiosas raízes ao chão, tudo ao contrario do que sempre ocorre na natureza, onde uma lagarta repugnante se transforma numa bela borboleta e eles estavam vendo agora, a impossível transformação de um ser humano num repugnante lagarto vegetante. A profusão de gente curiosa que saia dali, estava mais cônscia, acreditando que há um castigo a toda crueldade, mesmo inconsciente, e que a evolução gradual da humanidade passa necessariamente pelo amor que se adquire a vida das plantas e ao indispensável respeito à natureza.

Raimundo Candido
http://www.raimundinho.hpg.com.br/

Luciano Bonfim disse...
Valeu, poeta. Eis uma espécie de Gregor Samsa ecológico, né? Abraços!
Luciano Bonfim




Domingo, 22 Maio, 2011



                                   

Um comentário:

  1. Valeu, poeta. Eis uma espécie de Gregor Samsa ecológico, né? Abraços! Luciano Bonfim

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