segunda-feira, 27 de junho de 2011

                                               Malvada Cachaça

                A cidade tem um aspecto antigo, numa aparência rústica e secular, com suas casinhas singelas de um verniz desbotado neste tempo cru, desde o alvorecer até o sossegado entardecer. Um acontecimento incomum é uma raridade neste ermo lugar. Nada perturba a tranquilidade desta existência estática a beira de um nada.
                Mas um sino dobra insistentemente no fim de tarde, com aquela monótona badalada que se repete aos meus ouvidos, anunciando que alguém vai desta para melhor ou para pior, coisa que ninguém pode ainda afirmar com certeza. Um calor abafado causa um enorme embaraço na serenidade do espírito, com aquela aragem que nem se move, só sufoca.
                O único movimento é de um funeral que se desloca no ritmo dos dobres de um rouco sino, como se o tangesse, passo a passo, pela estreita rua que nasce na praça da matriz e termina num quadrilátero cercado por altos murros que guarnecem os caiados túmulos do cemitério.
                A passeata fúnebre é acompanhada de cinco ou seis figuras quase que dispersas, que se mostram com um ar familiar ou de amigos, numa última despedida.
                Aproximo-me, meio encabulado do esparso cortejo e indago a um dos acompanhantes:
                - Quem foi este que faleceu e vai assim nesta triste marcha derradeira, de modo tão lânguido e só? E respondem-me indiferente:
                - Este que vai pálido e encerrado assim, como a noite fria, incontrolavelmente bebeu. Bebeu seu nome, bebeu seu emprego, sua morada e a sua família. Como uma esponja, ingeriu toda cachaça do mundo até que a morte o sorveu.
                Sem muita surpresa, aceito essa explicação. É-me comum essa situação. E sigo meu rumo em sentido oposto ao deste cortejo fúnebre fazendo a mesma pergunta a muitas outras marchas que brotam de minha irrequieta memória, outros funerais que desceram àquele beco, muito bem conhecido de todos nós. Silenciosamente ainda indago-me:
                - Quem foi este que faleceu e vai assim nesta triste marcha derradeira, de modo tão lânguido e só?
                Uma única resposta me é dada por meu senso atordoado ao perceber as desgraças, ao contemplar as ruínas que se instalam lentamente como teias de aranhas em nossas vidas e que nem percebemos, levando-nos para um abismo final.
                E solenemente, digo-me:
                - Bebem a vida porque não mais resistem à aguda e insuportável sobriedade. Preferem viver sob a simulação ilusória da asa do álcool. Matam-se hoje para renascer no dia seguinte, antecipando um término, num lento suicídio feito em mil partes, até que um dia, com razão ou sem razão, quando todos os prazeres não mais existirem e só os lastimosos tormentos restarem, notam que a festa acabou. Neste momento vestem um novo paletó feito do cerne das árvores e se despedem, saudosamente, da malvada cachaça. 

Raimundo Candido

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