No tempo em que eu era menino, o mundo inteiro era as ruas de minha cidade, que eu corria num segundo, montado em bicicletas alugadas à hora no Beco da Galinha Morta. Ainda assim, por mais que eu me esforçasse, não havia jeito do meu dia caber nas horas adultas: ia pra rede à força, obrigado, zangado, mesmo então achava um desperdício dormir. Afinal, era tanta coisa a fazer, tanta brincadeira, tanta conversa, tanta novidade, e o tempo de estar acordado de jeito nenhum abarcava tudo. E pra piorar a situação, acharam de inventar os álbuns de figurinhas: para cada página completada, um prêmio – liquidificador, televisão, bicicleta... Minha vida virou um inferno!
Foi nessa época que eu conheci o Ferreirinha. Também, vivia na Casa Norberto Ferreira! Cada centavo que eu conseguia, era lá que eu ia deixar, trocado por envelopes de três figurinhas, torcendo pela premiada, pela “difícil”. Éramos um magote de meninos, todos ávidos, zuadentos e urgentes, e Ferreirinha atendia a todos, dividindo o tempo entre os fregueses que para ali acorriam na certeza de que tudo tinha, a mesma paciência que ainda hoje carrega em seu semblante de nonagenário. Comunista de carteirinha, nada nele denunciava aquela figura perigosa com a qual os adultos nos amedrontavam em noites de lua cheia, em conversas pelas calçadas: “Comunista é matador de padre, comedor de criancinhas...”. Eu, pra falar a verdade, achava o Ferreirinha um sujeito muito do inofensivo.
Mas foi somente depois de adulto, tendo já andado meio mundo, que eu vim a saber de fato quem é Ferreirinha e o porquê dele às vezes incutir tanto medo em algumas pessoas. Ferreirinha é autêntico, é coerente, é humano, interessa-se e luta pela condição dos mais carentes. Independente de questões partidárias – pelas quais “puxou” cadeia diversas vezes –, nunca abdicou de falar contra os desmandos dos poderosos, contra o malfeito dos insensíveis. A ambição e a riqueza fácil nunca o atraíram. Jamais percorreu o cômodo caminho da bajulação, nem contentou-se com a felicidade que só alcança aos amigos do rei.
Mesmo tendo frequentado o estudo regular por apenas seis meses, Ferreirinha tornou-se o maior memorialista de nossa história, contando-a em livros que são reverência a um tempo que não pode e nem deve ser preterido. Jornalista, radialista, cronista popular, folclorista, pesquisador, escritor e historiador, hoje com 93 anos, Norberto Ferreira Filho, o Ferreinha, é o símbolo vivo do homem que constrói o seu lugar como uma casa onde todos caibam, igualmente, irmãos em fartura e alegria.
Eu sinto saudades dos meus tempos de menino, é claro. Do Ferreirinha, não. A este eu tenho agora muito mais presente na minha compreensão de homem. E mesmo a sua vista cansada, sua memória falha, seu andar trôpego, de bengala à mão, me são imensuravelmente caros.
Lourival Mourão Veras
Todo poeta-menino que bebeu o frêmito do mundo pelo olhar, quando chega a mago-poeta nos devolve-o, feito um tesouro, riquíssimo, sublime, como se o resgatasse do fundo do mar! Notável Lourival, delirante poeta, profeta profícuo, esdrúxulo xamã!
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