sexta-feira, 1 de julho de 2011

A mulher de todos nós


É uma dessas mulheres cujo pai era fiscal do Estado.Vivia ele de ribeira em ribeira, a mandado do ofício, arrastando na bagagem a família, dando a cada um dos filhos uma cidade diferente como lugar de nascença.
Uma dessas vilas pariu a Socorrinha, que, por segredos que o destino esconde, acabou ficando e adotando como pátria a cidade dos vales potis. Crateús, logo esta emblemática terra do sertão oeste do Ceará. E logo num tempo em que corriam histórias de horrores e de resistências de um povo, liderado por um Bispo Vermelho, que não se curvava às injustiças.
A menina aprendeu cedo os trejeitos da terra-mãe. Revelou-se rebelde, teimosa e bravia e enfileirou-se pelas ruas nos decididos cordões juvenis, a clamar por liberdade. Mas do outro lado havia os “indecisos cordões”, mandados para tornar as vidas sem razão. Assim, já aos 14 anos, a ainda tão menina experimentou a contragosto a escuridão dos porões da ditadura.
Era 1981, quando o país pensava que respirava o alívio trazido pela lei da anistia. Os cavaleiros dos horrores pintaram de verde a cidade para receber o presidente em exercício, Aureliano Chaves. Em farsa bem encenada, o mandatário discursaria nos bolsões da seca, que há muito trucidavam de tiranias os flagelados camponeses.
Aqueles pobres sertanejos, apesar da miséria, haveriam de acolher a autoridade com seus olhos de esperança. Porque assim a força lhes fazia agir, e a fome não lhes matara o seu gênio pacífico.
Mas os olhos da menina sabiam que o amanhã há que ser feito. Sabia que deixando como estava, tudo ficaria ontem para sempre. Então foi às ruas, donde foi arrastada para o submundo do horror. As tesouras da força podaram seus cabelos loiros, como à Geni, a quem atiraram as pedras das honras...
No mais, restou viver o que possível fosse. O pai não mais arrasta a família, de vila em vila. Arrasta-se, agora, ela própria, seus traumas sem fim, que vai transformando em arte. Quando a mente não suporta, dá um jeito: apaga. Uma amnésia, uma cegueira, uma perna manca vão resolvendo as coisas. Seu cérebro é meio que como o calcanhar de Aquiles ou os cabelos de Sanção: falha na hora incerta.
Quando acerta, ela enche os ouvidos com seu soprano suave. Canto de Iara. As canções que encena chegam às estrelas. Outras vezes banca a Maria Amélia, essa matuta fofoqueira, que toma conta dos palcos e ribaltas coçando seus piolhos. Na paixão, não passa de uma adúltera, apedrejada nas calçadas do mundo. E no presente da vida real, é mulher que ama demais, mesmo quando o mundo não lhe transparece afeto.
Que Socorrinha, socorrida por seu cérebro fajuto, nos tormentos das memórias vis, e genial, no milagre da arte, continue sendo um(a) socorro da cultura de nossa terra, vanguarda do nosso teatro e nossa música, tocha acesa no facho da luta a se tornar estrela nas praças e palcos de Crateús.
Elias de França

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