terça-feira, 19 de julho de 2011


                                                               As botijas do Zé Dobrão

            Tenho compaixão dos meus verdes amigos vegetais que brotam pelas ruas enfeitadas destas cruéis urbes. Tudo em razão de terem que suportar o efeito de suas podadas arquiteturas paisagísticas. É com tristeza que contemplo estas pobres plantas depenadas pelas ruas, num tronco desornado de seus indispensáveis galhos, como que pedindo clemência aos céus.
            Algumas velhas árvores parecem saber de sua sina ou querem adivinhar logo o destino trágico para seu arcabouço vegetal, que penosamente vai se formando, cascas sobre cascas. Dá-me a impressão que temem o gume de uma foice ou a dilaceração de um machado.
            Há arvores em que até a sombra é carregada deste fatigado peso.            Sentado aqui, embaixo de um desses meus verdes amigos, a quem muito simpatizo, na calçada da casa do Zé Dobrão, lembrei-me de um bordão característico de uma famosa ONG mundial chamada Greenpeace, que me causou uma profunda impressão: “Quando a última árvore tiver caído, quando o último rio tiver secado, quando o último peixe for pescado, vocês vão entender que o dinheiro não vale nada.”
            Sempre que posso venho aqui e fico sentado à sombra, na luz da lua, deste majestoso pé de Sebinho, carregado de verdes vagens, que tem uma pasta branquinha e doce como mel. De dia, os bem-te-vis, os sabiás e as primaveras fazem a festa. Mal a claridade retira-se de seu luzente palco, vem um bando de morcegos frutíferos com seus imperceptíveis ruídos ultrassônicos, localizando com precisão a posição exata das vagens, para saborear o açucarado néctar e passam em revoada por sobre nossas cabeças, na calçada do Zé.
            É o espetáculo que agora assisto e me faz lembrar de um presságio triste que circula nas concepções dramáticas de nossas vidas, que diz: “Um dia iremos necessitar da sombra de uma árvore, vamos vagar livremente a procura de uma e o que encontraremos serão galhos secos, troncos sangrando e raízes exaustas.” Tomara Deus que isso não ocorra, nunca!
            Na frente da casa do Zé Dobrão, começa mais uma sessão noturna de bate-papo, despretensioso, que a modernidade está apagando de nossas deliciosas calçadas.
            E do rio do Tourão, aqui ao lado, que desce majestoso para encontrar o Rio Poti, logo a uns poucos metros abaixo, vem um aroma característico de margens ribeirinhas, como lá nos bíblicos Tigre e Eufrates da antiguidade, com seus currais de gado, como aqui, no final da Agamenon Machado. É o próprio Zé que explica o porquê do nome da rua: — O Dr. Agamenon, antigamente, receitava na casa ao lado. Era um bom médico, e ao meio dia sempre passava com um  litro embrulhado debaixo do braço, enquanto receitava o povo, ia tomando, tranquilamente, sua cachacinha. A conversa vai se soltando pelos mais diversos assuntos. Alguém de repente, sem mais nem menos, indaga:
            — Vocês ouviram a entrevista do João Aguiar, no rádio? Foi sobre uma botija que ele sonhou, mas não teve coragem de arrancar, quem ficou com o tesouro foi outra pessoa. Ele ficou só com um anel de ouro que deixaram por lá. Era um deixa, para que ele entrasse em cena, com suas gostosas histórias sobre nossa origem, sobre nossos antepassados:
            — Na época que meu pai trabalhava no Alegre, na fazenda de seu Jovino Melo, lá pro lado do Parque de Exposição, também se achou umas botijas! Ele deixava a frase solta no ar.
            A curiosidade, que é mãe de toda ciências, de todos os conhecimentos, invadia-nos a alma e, pelo reflexo agudo de nosso olhar, Zé percebia a súplica para que continuasse a narrar sua histórica. E prossegue...
            — Nos terrenos da fazenda Alegre tinha uma imensa lagoa, com muito mato ao redor e um grande pé de Pereiro, onde os caçadores de marrecas armavam suas tocaias. Noite havia em que se assustavam com uma marmota, uma visagem que aparecia por lá. Diziam que um bode com uma grande barbicha e uns longos chifres chagava num alvoroçado barulho e em altos berros. O Zé imita bem com sua voz onomatopéica perfeita: — Beeeeeé beeeeeé beeé eeeé beeeeeeeeeeeeeé beeeeé bé beeeé beeeé eé beé! Os caçadores corriam com medo, passavam sebo nas canelas e esqueciam até dos coitadinhos das chamas de marrecas.  Zé Dobrão vai nos esclarecendo que na época dos revoltosos, as pessoas guardavam seus tesouros em ouro enterrados sob copas de árvores, para protegê-los. Com a morte de seus donos, os potes de barros ficavam lá esquecidos e enterrados, até que um escolhido sonhasse e arranjasse uma titânica coragem para arrancar a botija, munido de pás, picaretas, velas e orações. Tinha que ser numa sexta feira, a meia noite. Não esquecendo de traçar uma estrela de seis pontas no chão, antes de começar a cavar.
            — Eu, meu pai e seu Jovino, íamos com o gado pela trilha do velho Pereiro. Quando chegamos bem embaixo da árvore, vimos os dois buracos já feitos, de lados opostos. Advínhamos logo: Nesta noite alguém arrancou umas botijas por aqui... Meu pai se abaixou e tirou um pedaço de corrente do buraco e foi logo mostrando para seu Jovino, que disse:  — Não compadre, num é ouro não! É só um pedaço veio de bronze e colocou no bolso. Depois daquelas escavações que vimos debaixo do Pereiro, nunca mais apareceu nenhuma marmota por lá. E querendo mudar logo de assunto, dispara a queima-lingua:
            — Vocês viram como o capim amanheceu hoje? Estava coberto de uruvai! Assevera-nos de sua cadeira de balanço.           
            — O que é uruvai, Zé? Você quer dizer orvalho, não é? Alguém retifica, já esperando uma súbita resposta.
            — E orvalho num é aquilo que a mulher tem? Dispara o Zé com mais uma das suas finíssimas afirmativas folclóricas. O bom mesmo é a gente ouvir a gostosa risada de Dona Chica, sua esposa, num riso solto e espontâneo, que contagia e nos dar vontade de voltar no dia seguinte, para mais uma rodada de prosopopéia do Zé.


Raimundo Candido

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