segunda-feira, 18 de julho de 2011

UM TIPO SUSPEITO

Elias de França

Era um desses que fizera o raro movimento inverso, contrariando a lei da gravidade brasileira: nascido no Sul (Sudeste), veio cair no Norte, ou melhor, nas cearenses terras nordestinas. Órfão de pai e mãe depois dos trinta, tardiamente se dá ao desafio de cavar a sobrevivência, sem os generosos subsídios do pai marinheiro. Tivesse nascido fêmea, faria jus à pensão vitalícia de filha de militar, que, àqueles tempos, ainda consistia em direito adquirido.
Mas vez que macho nascera e estivera até então, homem haveria de ser sempre. Sem ambições e com um coração maior que o juízo, veio a se meter com a penosa construção da arte. E assim embrenha-se sertão-a-dentro, na busca de garimpar a saga mais bela para uma historia de vida.
Foi assim que, numa boca de noite, desembarca em Crateús, depois de umas cinco horas de Fortaleza à Hidrolândia, mais oito de divertidas companhias na oficina de contação de histórias, mais duas de pau-de-arara Hidrolândia-Ipu, umas três horas de espera no Posto Encruzilhada, mais dois tempos de salabancos na topic até Nova Russas, uma tarde de prosas com as moças do Oeste e, enfim, hora e meia de Barrosão.
Como de costume, seu vulto era todo malas (pretas): um violão encapado, uma mala de carretilha, uma grande bolsa, uma mochila de laptop e sua inseparável mochila necessary, cujo conteúdo nem o diabo adivinharia.
Salta na porta do Banco Privado para ali tentar resgatar seu pouco dinheirinho. Já havia pendurado a conta do hotel, no último rancho, porque os caixas lhe sonegaram o saque, nas varias tentativas que fizera em cada um dos vilarejos em que passara. E ali, mais uma vez, a máquina fria lhe avisa estar vazia de numerários. Em fúria, agarra-se a seus três telefones celulares e passa a percorrer o doloroso itinerário de etapas ditadas pela voz eletrônica do outro lado do fone. Seus pés e olhos a acompanhar o contrapasso sem fim daquela maratona de espera da solução que a antipessoa em linha nunca lhe trazia.
A viatura do Ronda do Quarteirão já cumpriria sua quarta averiguação estratégica em frente ao recinto, sem que aquele elemento, em atitude suspeita, se ausentasse do local. E em cada volta, o indivíduo transparecia mais conluio. Ao telefone, andando no interior do banco como que a medir em passos o território e, vez em quando, encostando o rosto nas vidraças para sondar o derredor. O destacamento, então, chama pelo moderno rádio o comando para comunicar a abordagem ao suspeito, ao que obtém pronta autorização.
Os praças saltam da viatura de armas em punho, chutam a porta de vidro com um dos coturnos e cercam o sujeito. Este deixa a voz eletrônica falando sozinha e ergue-se em membros e torax para o alto, para a revista. A moça de farda é designada para vasculhar as tantas malas e mochilas enquanto o sargento conduz o interrogatório:
- Como se chama?
- É Ted!
- Mora aonde?
- Fortaleza.
- Trabalha? Aonde?
- Hidrolândia.
- de onde vem?
Nova Russas...
Atento às respostas e vendo o documento de identidade, o sargento constatava a avalanche de contradições em torno daquele sujeito, de estatura mediana, cabelos avermelhados, olhos claros, com sotaque carioca. Nada batia. Nem o dito com o dito, nem com o não dito. Pois no RG, nada de Ted e sim um nome estranho, de origem saxônica: Flamsteed Flamarion; local de nascimento: Rio de Janeiro, a terra do crime organizado; carteira de trabalho, branquinha, sem um único registro...
As atenções se redobraram a espera de, a qualquer instante, a moça policial desvelar de dentro das malas pretas as armas sofisticadas que o caso transparecia. Mas na muamba, apenas um violão velho sem fundo falso, livros infantis, CDs e DVDs de Bia Bedran e Palavra Cantada, roupas surradas, inclusive uma de palhaço arlequim, algumas garrafas de indaiá...
O sargento ainda arrisca uma ultima pergunta, antes de devolver confuso os documentos:
- Que faz aqui?
E o homem responde, juntando suas burundangas e socando-as nas malas, sem muito zelo:
- Vim contar mentiras, histórias e causos!
Dito assim, pendura seus trecos nos tantos ganchos do corpo e sai a pé, pela Rua Dom Pedro II, da Centenária Cidade de Crateús, com seu coração maior que o juízo, seguido de longe pela viatura do Ronda, passando por debaixo do arco da Santa e tocando em frente, até onde a lei da gravidade o torne queda (ou salto) outra vez.



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