Percorria, vagueando,
densamente absorto, uma poeirenta estradinha entre as sebes de ripas
entrelaçadas de uns cercados nos arredores da cidade, e pareceu-me ouvir –
muito ao longe - numa voz grave e rouca, alguém a citar meu nome:
- Professor Raimundo!
Paro, viro-me e olho para a
trilha já percorrida, só poeira! Verifico atrás das excludentes cercas, já em
ruínas, mas não vejo ninguém que possa ter me invocado.
Confesso que senti um estranho
calafrio percorrendo-me à espinha dorsal, até os pelos do braços eriçaram.
Indaguei-me: - Será uma alma do outro mundo? Quis correr, porém olhei para a
copa do Juazeiro, fincado na beira da estrada, sei que era quase impossível,
mas poderia ter um vivente ali, empoleirado!
Mesmo
envergonhado pelo medo súbito e por confundir o som do vento com uma voz real,
acelero o passo.
-
Professor Raimundinho! (De novo aquela estranha voz e, agora, tenho certeza
absoluta, não foi o vento!)
- Estou aqui debaixo do
Juazeiro! Gostaria de conversar um pouco com o senhor!
Parei
novamente, mas fiquei sem coragem de olhar para trás, havia notado um velho e
esgotado jegue, descansando sob a sombra do pé de Juá, que estava fora dos
cercados... Não poderia ser?!
-
Não tenha medo, por favor! Sei que parece impossível o senhor está me ouvindo,
mas é verdade! Nos falamos sim, mas só para aqueles que sabem ouvir e conseguem
ver a essência das coisas e por isso você precisa saber o que estamos passando,
deve ter ciência do que estamos sofrendo!
Saber
que os animais se comunicam e possuem sentimentos me ajudou aceitar o episódio
inusitado... Mas um jegue! Por que não o vadio pinscher Luppi, que entendo tudo
que ele diz e tudo que ele quer! O Jumento, de uma cor acinzentada com uma cruz
negra pregada nas costa, continua falando:
-
Professor, pode me chamar de Jerico! Quero lhe fazer uma perguntas, eu posso?
-
Claro que pode, meu amigo Jerico! Respondi rápido, ainda com temor daquela
arrumação.
- É
verdade que aquele povo de olhos puxados, querem levar o restante de nossos
irmãos, aqui do nordeste, para fazer enlatado, lá na China?
Eu
sabia que era verdade, mas notando uma lágrima escorrer pela face do Jerico,
fiquei sem saber o que dizer. Tentei amenizar:
-
Meu amigo, aquele povo é muito estranho, mas não se preocupe, eles vão primeiro
consumir as formigas, os escorpiões, os morcegos e uma multidão de cães, que já
estão armazenados em suas geladeiras... Não quis dizer que um acordo entre o
Brasil e a China liberou o intercâmbio de jumentos!
-
Obrigado Professor, por tentar me acalmar, mas nós ficamos sabemos de tudo!
Desde que aquele cidadão, que sabemos muito bem quem é, pegava os nossos
antepassados pelas estradas – Lembra-se de que ele tinha até um jeitinho de
laçar os jegues e uma roldana fazia o resto do serviço, puxando nossos irmãos
para dentro de um gaiolão do caminhão? - que o apetite dos chineses foi
despertado para carne de Jumento. Até aquele famoso escritor, seu amigo, o tal
de Luciano Bonfim, e que escapa lá para lado de Sobral, denunciou que os enlatados
provenientes de Pernambuco e São Paulo, eram quitute de jegue. Ele disse
também, que uns amigos dele, depois de consumir o tal filé, forma vistos um bom
tempo depois, a ornear pelos campos...
E o Jerico continua a debulhar
seu rosário de lamentos:
-
Estou velho e cansado, não posso mais com o peso nos lombos, por isso me abandonaram
nesta estrada. Professor me diga, sinceramente, você conhece um ser vivo na
face da terra que já foi mais injustiçado que a nossa raça? Ganhamos essa cruz
na nossas costas desde que ajudamos a Maria e o José a fugir com Jesus Cristo
para o Egito. Ajudamos até a Sansão vencer uma guerra e se formos numerar, a
lista seria imensa, não merecemos tantas injustiças, não acha, professor?
Confirmei
com o maneio de cabeça, mas não deu tempo nem de falar, o Jerico continuou:
-
Veja você, estamos passando por um aperto danado nestes anos de seca, água vai
faltar nas suas casas e não se lembram do que nós fizemos! Mas professor,
quantos anos e quantas décadas, sustentamos com água de beber os potes da sua
cidade. Desde a época do lote de jegue carregados com os roliços canecos do Seu
Lino, abastecendo a casa de Seu Amâncio e toda a Praça da Matriz. Você era menino, professor, e o Seu Gonçalinho,
o Gonçalo Soares Melo, está lembrado, que fornecia água para a casa da Dona
Delite, do Seu Milton, do Seu Osvaldo, do Aguiar a 100 cruzeiro a carga, vindos
da Grota do Neco ou do Retiro? Aqueles jumentinhos que trabalhavam o dia
inteiro e à tardinha eram soltos no cercado do Poço da Roça, foram grandes
heróis, professor!
-
Quero só ver quando setembro chegar, vocês todos correndo atrás dos carros
pipas, implorando por água que não sabem nem de onde vem!
-
Professor, deixe eu lhe lembrar uma coisinha, nos anos de 80, 81 e 82, tudo foi
seca braba como essa que estamos sofrendo e só foi chover em 83, no dia 19 de
março, depois do décimo quarto dia de um sacrifício da santo Afredinho,
lembra-se? Pois sim, em 82, todas as cacimbas aqui por perto secaram! Sabe como
foi resolvida a situação? As tropas de Jegue, do Seu Alaíde, do Seu Chico
Bezerra, do Joaquim Adão, do Seu Vicente, do Gonçalinho com seus canecos
redondinhos, foram quem salvaram a situação. Água só tinha mesmo no poço do
Ramalho, a 6 km de distância, lá no Morro Alegre. As veredas chagaram a afundar
de tanto os jegues pisarem com suas cargas d’água que salvaram a cidade de
Crateús, somos ou não somos heróis, professor Raimundo?
Empolgado,
com aquelas boas lembranças do Jerico, completo: - Sem falar, meu amigo, na
tropa de Jegue do Genaro levando carradas e carradas de caixotes de areia para
construir a cidade! Sem falar nas centenas de açudes, de barreiros, feitos pelo
esforço e compactados com o suor de vocês.
Notei
que o Jerico até se animou mais um pouco, mas aquela lágrima não parava de
escorrer pelo seu focinho e, também, me deu vontade de chorar. O jegue fala:
-
Amigo, Raimundinho, eu lhe chamei aqui, foi mais para que você levasse uma
mensagem para esse povo que não tem o mínimo respeito pelo nosso passado e nem
pelo serviço prestado que fizemos à cidade.
Concordo em transmitir a mensagem do jerico crateuense, e me despeço, do
amigo que ficou esperando o fim de seus dias sem um reconhecimento e sem uma
homenagem.
O Jerico me chama, mais uma
vez, e diz: - Raimundo, se um dia não existir mais nenhum membro de nossa
espécie por aí, gostaria que você convocasse aquela sua equipe: o Providência,
o Flavio Machado e o Silas Falcão e empreendessem uma campanha para colocar o
busto do jerico ao lado daquele poeta que vocês plantaram na Praça José
Coriolano. Sorrio, sem negar, sem confirmar e sigo vagueando, densamente
absorto, uma poeirenta estradinha entre as sebes de ripas entrelaçadas de uns
cercados nos arredores da cidade.
Agora,
seres injustos e cruelmente ingratos, prestem bem atenção na mensagem de
protesto, apurem bem a audição e ouçam o berro que o jerico mandou para vocês:
-
Hooooooonnn! Hiiiiii! Hooooonnn! Hiiii!
Hooooonnn! Hiiii! Hoooon!
Hiiiiii! Hooonn! Hooonnn!
Zacharias Bezerra de Oliveira disse...
Hooooooonnn! Hiiiiii! Hooooonnn! Hiiii! Hooooonnn! Hiiii! Hoooon! Hiiiiii! Hooonn! Hooonnn!
É verdade, professor Raimundo, os animais falam, mas nós não os sabemos escutar!
José Alberto de Souza disse ...
Quem sabe este dileto amigo não funda um Centro de Tradições Crateuenses a fim de preservar o jegue como animal símbolo da sua cidade, a exemplo do que ocorre com o cavalo aqui no Rio Grande do Sul. Até podia ser equiparado a uma condição sagrada que nem a vaca na Índia...
Já ouvi falar que nossos antepassados, quando queriam abrir uma estrada, costumavam amarrar umas latas na cola de um burro e depois espantavam-no mato afora, seguindo seus rastos para abrir a facão essa picada.
É verdade, professor Raimundo, os animais falam, mas nós não os sabemos escutar!
José Alberto de Souza disse ...
Quem sabe este dileto amigo não funda um Centro de Tradições Crateuenses a fim de preservar o jegue como animal símbolo da sua cidade, a exemplo do que ocorre com o cavalo aqui no Rio Grande do Sul. Até podia ser equiparado a uma condição sagrada que nem a vaca na Índia...
Já ouvi falar que nossos antepassados, quando queriam abrir uma estrada, costumavam amarrar umas latas na cola de um burro e depois espantavam-no mato afora, seguindo seus rastos para abrir a facão essa picada.
Quem sabe este dileto amigo não funda um Centro de Tradições Crateuenses a fim de preservar o jegue como animal símbolo da sua cidade, a exemplo do que ocorre com o cavalo aqui no Rio Grande do Sul. Até podia ser equiparado a uma condição sagrada que nem a vaca na Índia...
ResponderExcluirJá ouvi falar que nossos antepassados, quando queriam abrir uma estrada, costumavam amarrar umas latas na cola de um burro e depois espantavam-no mato afora, seguindo seus rastos para abrir a facão essa picada.