terça-feira, 4 de junho de 2013

O Berro do Jegue Crateuense


Percorria, vagueando, densamente absorto, uma poeirenta estradinha entre as sebes de ripas entrelaçadas de uns cercados nos arredores da cidade, e pareceu-me ouvir – muito ao longe - numa voz grave e rouca, alguém a citar meu nome:
 - Professor Raimundo!
Paro, viro-me e olho para a trilha já percorrida, só poeira! Verifico atrás das excludentes cercas, já em ruínas, mas não vejo ninguém que possa ter me invocado.
Confesso que senti um estranho calafrio percorrendo-me à espinha dorsal, até os pelos do braços eriçaram. Indaguei-me: - Será uma alma do outro mundo? Quis correr, porém olhei para a copa do Juazeiro, fincado na beira da estrada, sei que era quase impossível, mas poderia ter um vivente ali, empoleirado!
                Mesmo envergonhado pelo medo súbito e por confundir o som do vento com uma voz real, acelero o passo.
                - Professor Raimundinho! (De novo aquela estranha voz e, agora, tenho certeza absoluta, não foi o vento!) 
- Estou aqui debaixo do Juazeiro! Gostaria de conversar um pouco com o senhor!
                Parei novamente, mas fiquei sem coragem de olhar para trás, havia notado um velho e esgotado jegue, descansando sob a sombra do pé de Juá, que estava fora dos cercados... Não poderia ser?!
                - Não tenha medo, por favor! Sei que parece impossível o senhor está me ouvindo, mas é verdade! Nos falamos sim, mas só para aqueles que sabem ouvir e conseguem ver a essência das coisas e por isso você precisa saber o que estamos passando, deve ter ciência do que estamos sofrendo!
                Saber que os animais se comunicam e possuem sentimentos me ajudou aceitar o episódio inusitado... Mas um jegue! Por que não o vadio pinscher Luppi, que entendo tudo que ele diz e tudo que ele quer! O Jumento, de uma cor acinzentada com uma cruz negra pregada nas costa, continua falando:
                - Professor, pode me chamar de Jerico! Quero lhe fazer uma perguntas, eu posso?
                - Claro que pode, meu amigo Jerico! Respondi rápido, ainda com temor daquela arrumação.
                - É verdade que aquele povo de olhos puxados, querem levar o restante de nossos irmãos, aqui do nordeste, para fazer enlatado, lá na China?
                Eu sabia que era verdade, mas notando uma lágrima escorrer pela face do Jerico, fiquei sem saber o que dizer. Tentei amenizar:
                - Meu amigo, aquele povo é muito estranho, mas não se preocupe, eles vão primeiro consumir as formigas, os escorpiões, os morcegos e uma multidão de cães, que já estão armazenados em suas geladeiras... Não quis dizer que um acordo entre o Brasil e a China liberou o intercâmbio de jumentos!
                - Obrigado Professor, por tentar me acalmar, mas nós ficamos sabemos de tudo! Desde que aquele cidadão, que sabemos muito bem quem é, pegava os nossos antepassados pelas estradas – Lembra-se de que ele tinha até um jeitinho de laçar os jegues e uma roldana fazia o resto do serviço, puxando nossos irmãos para dentro de um gaiolão do caminhão? - que o apetite dos chineses foi despertado para carne de Jumento. Até aquele famoso escritor, seu amigo, o tal de Luciano Bonfim, e que escapa lá para lado de Sobral, denunciou que os enlatados provenientes de Pernambuco e São Paulo, eram quitute de jegue. Ele disse também, que uns amigos dele, depois de consumir o tal filé, forma vistos um bom tempo depois, a ornear pelos campos...
E o Jerico continua a debulhar seu rosário de lamentos:
                - Estou velho e cansado, não posso mais com o peso nos lombos, por isso me abandonaram nesta estrada. Professor me diga, sinceramente, você conhece um ser vivo na face da terra que já foi mais injustiçado que a nossa raça? Ganhamos essa cruz na nossas costas desde que ajudamos a Maria e o José a fugir com Jesus Cristo para o Egito. Ajudamos até a Sansão vencer uma guerra e se formos numerar, a lista seria imensa, não merecemos tantas injustiças, não acha, professor?
                Confirmei com o maneio de cabeça, mas não deu tempo nem de falar, o Jerico continuou:
                - Veja você, estamos passando por um aperto danado nestes anos de seca, água vai faltar nas suas casas e não se lembram do que nós fizemos! Mas professor, quantos anos e quantas décadas, sustentamos com água de beber os potes da sua cidade. Desde a época do lote de jegue carregados com os roliços canecos do Seu Lino, abastecendo a casa de Seu Amâncio e toda a Praça da Matriz.  Você era menino, professor, e o Seu Gonçalinho, o Gonçalo Soares Melo, está lembrado, que fornecia água para a casa da Dona Delite, do Seu Milton, do Seu Osvaldo, do Aguiar a 100 cruzeiro a carga, vindos da Grota do Neco ou do Retiro? Aqueles jumentinhos que trabalhavam o dia inteiro e à tardinha eram soltos no cercado do Poço da Roça, foram grandes heróis, professor!
                - Quero só ver quando setembro chegar, vocês todos correndo atrás dos carros pipas, implorando por água que não sabem nem de onde vem!
                - Professor, deixe eu lhe lembrar uma coisinha, nos anos de 80, 81 e 82, tudo foi seca braba como essa que estamos sofrendo e só foi chover em 83, no dia 19 de março, depois do décimo quarto dia de um sacrifício da santo Afredinho, lembra-se? Pois sim, em 82, todas as cacimbas aqui por perto secaram! Sabe como foi resolvida a situação? As tropas de Jegue, do Seu Alaíde, do Seu Chico Bezerra, do Joaquim Adão, do Seu Vicente, do Gonçalinho com seus canecos redondinhos, foram quem salvaram a situação. Água só tinha mesmo no poço do Ramalho, a 6 km de distância, lá no Morro Alegre. As veredas chagaram a afundar de tanto os jegues pisarem com suas cargas d’água que salvaram a cidade de Crateús, somos ou não somos heróis, professor Raimundo?
                Empolgado, com aquelas boas lembranças do Jerico, completo: - Sem falar, meu amigo, na tropa de Jegue do Genaro levando carradas e carradas de caixotes de areia para construir a cidade! Sem falar nas centenas de açudes, de barreiros, feitos pelo esforço e compactados com o suor de vocês.
                Notei que o Jerico até se animou mais um pouco, mas aquela lágrima não parava de escorrer pelo seu focinho e, também, me deu vontade de chorar. O jegue fala:
                - Amigo, Raimundinho, eu lhe chamei aqui, foi mais para que você levasse uma mensagem para esse povo que não tem o mínimo respeito pelo nosso passado e nem pelo serviço prestado que fizemos à cidade.  Concordo em transmitir a mensagem do jerico crateuense, e me despeço, do amigo que ficou esperando o fim de seus dias sem um reconhecimento e sem uma homenagem.
O Jerico me chama, mais uma vez, e diz: - Raimundo, se um dia não existir mais nenhum membro de nossa espécie por aí, gostaria que você convocasse aquela sua equipe: o Providência, o Flavio Machado e o Silas Falcão e empreendessem uma campanha para colocar o busto do jerico ao lado daquele poeta que vocês plantaram na Praça José Coriolano. Sorrio, sem negar, sem confirmar e sigo vagueando, densamente absorto, uma poeirenta estradinha entre as sebes de ripas entrelaçadas de uns cercados nos arredores da cidade.
                Agora, seres injustos e cruelmente ingratos, prestem bem atenção na mensagem de protesto, apurem bem a audição e ouçam o berro que o jerico mandou para vocês:
                - Hooooooonnn! Hiiiiii! Hooooonnn! Hiiii!  Hooooonnn! Hiiii!  Hoooon! Hiiiiii! Hooonn! Hooonnn!

Raimundo Cândido



Zacharias Bezerra de Oliveira disse...
Hooooooonnn! Hiiiiii! Hooooonnn! Hiiii! Hooooonnn! Hiiii! Hoooon! Hiiiiii! Hooonn! Hooonnn!

É verdade, professor Raimundo, os animais falam, mas nós não os sabemos escutar!

José Alberto de Souza disse ...
Quem sabe este dileto amigo não funda um Centro de Tradições Crateuenses a fim de preservar o jegue como animal símbolo da sua cidade, a exemplo do que ocorre com o cavalo aqui no Rio Grande do Sul. Até podia ser equiparado a uma condição sagrada que nem a vaca na Índia...
Já ouvi falar que nossos antepassados, quando queriam abrir uma estrada, costumavam amarrar umas latas na cola de um burro e depois espantavam-no mato afora, seguindo seus rastos para abrir a facão essa picada.

Um comentário:

  1. Quem sabe este dileto amigo não funda um Centro de Tradições Crateuenses a fim de preservar o jegue como animal símbolo da sua cidade, a exemplo do que ocorre com o cavalo aqui no Rio Grande do Sul. Até podia ser equiparado a uma condição sagrada que nem a vaca na Índia...
    Já ouvi falar que nossos antepassados, quando queriam abrir uma estrada, costumavam amarrar umas latas na cola de um burro e depois espantavam-no mato afora, seguindo seus rastos para abrir a facão essa picada.

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