segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Bastiãozim e Datim numa só veia poética!

Ao contemplar o seio da Caatinga inóspita, plena de mandacarus, de árvores semimortas em exibição fantasmagórica, e repleta de esqueletos de animais espalhados pelas veredas tortas sobre um sol escaldante, tudo como parte integrante do tempo, fico admirado que alguém divise, neste quadro de horrores, uma fervilhante fonte de poesia.
O poeta francês Boudelaire uma vez disse “A admiração começa onde acaba a compreensão”. Nunca entendi bem o concretismo dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, com seus poemas plásticos que mais parecem uma paisagem de gravetos e ossos, numa estampa rústica do sertão. Como também nunca ponderei sobre o motivo de, numa mesma família, inesperadamente, brotar dois exímios poetas. Destino ou o DNA da família Campos? Ou parte integrante de um chão, como o que ocorre no Distrito de Curral Velho, ora um grande celeiro de flores, ora estorvo de touça espinhos e bem no âmago da família Bonfim. Por lá, numa monta de quinze irmãos, dois tenderam para as rimas.
   Os poetas do Curral Velho nascem com a disposição dos gatos, na mansidão do olhar a gente nota a efetivação de um verso tal iminente bote de cascavel, e com o enxerimento do Bem-te-vi, um corriqueiro que se imiscui em todos os acontecimentos que a vista alcança.  
Sebastião Ferreira do Bonfim, o poeta Bastãozim, tinha tudo para não dar certo na vida, exaurido fisicamente, com problemas de saúde por Doença de Chagas contraída quando criança, afora uma desastrada queda de cavalo que prejudicou a espinha dorsal. Mesmo com as complicações sérias que a vida lhe impôs, vestiu a capa protetora dos poetas revertendo a situação, e a dádiva da existência tornou-se uma alegria espontânea!
Na bodega do botafoguense José Osmar, na Rua Frei Vidal, era um dos pontos onde Bastiaõzim gostava de prosear, dobrava um perna, tão fina quanto um cambito, sobre o balcão e logo algum amigo perguntava: - E aí, Bastiãozinho, como é que está o Galo? Foi o único torcedor (E fanático!) do Atlético Mineiro que conheci por essas bandas. Com o semblante triste, respondia: - O Galo virou pinto, todo mundo agora bate nele! Notem bem, pois isso é atitude de poeta, ele projetou o dia de seu cortejo fúnebre e viveu cada detalhe, bem antes de sua morte, encarregando um sobrinho, o Olímpio Bonfim, de entoar o hino do clube do coração no instante de seu séquito: “Lutar, lutar, lutar... Uma vez, até morrer!” Aquele emocionante momento lembrou-me uns versos do poeta Erza Pound “Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba, donzelas hão de espalhar pétalas de rosas.”
Dizem que o espontâneo verso só é liberado da veia lírica quando o poeta sofre, e depois de muito ter sofrido, e quando o poeta ama, depois de muito ter amado. Assim Bastiãozim verteu belas palavras como um rio de lágrimas: “Desde a minha mocidade / que minha vida é sofrer / doente já pra morrer / vejo essa fatalidade / não pude ter vaidade. / Eu ainda era criança / na memória ficou por lembrança / essa glória de tristeza / foi oferta da natureza / que me deu como herança.”
Na família Bonfim os versos estão embutidos nas reentrâncias do DNA, e se a mãe do Sebastião Ferreira do Bonfim fazia sonetos musicados, o que esperar desta seara, a não ser arrebatadores poetas com versos de mão cheia! Ele cantou, em suas mensagens brejeiras, o amor, a natureza e a vida, de modo prazenteiro, como no poema Meu Martelo de Aço: “Meu martelo de aço / Meu lápis pioneiro / Meu forte braço / Para ganhar o cruzeiro. //  Quando a manhã vem aparecendo / Com meu lápis vou riscar / Com meu martelo vou batendo / Para o pão poder ganhar /  É trabalhando todo dia / Pra melhor poder passar / E só me falta uma pessoa / A mulher pra me zelar”
Bastiãozim registrou os momentos poeticos do sertão de Cratheús em 70 cadernos, escriturais papiros, como fazia no seu trabalho diário ao esculpir arte no couro curtido do gado.
O outro grande poeta daqueles quinze unidos irmãos do Curral Velho foi o Joaquim, um duende esperto chamado Datim Bonfim. Ele mesmo se dizia um sujeito extrovertido e brincalhão, mas nem precisava anunciar-se, notava-se pela exuberante alegria e pelo ardor na vida! Sertanejo da roça, um trabalhador braçal com o ânimo de um semideus (Ele dizia: Na roça, eu dois duas por uma!), mas aparentando um desengonçado sertanejo grego (Como o irmão Bastiãozim, também passou por penosas cirurgias), carregando o espírito de um poeta embelezado pelo amor e pela vida, escrevendo belas palavras com a tinta verde dos mufumbos e dos juazeiros, ou rabiscando versos com a cor cinza da mata seca do sertão de onde ressoa a (des)harmonia nordestina.
Eis o poeta Datim, um erudito e apaixonado sertanejo, confiram: “ ... Amar assim como eu amo / É um delírio talvez /  Uma loucura não chamo / Por louco, não sou bem vez /  É por força e mistério / Não sei que dia etério / Que não seja da onde é de vir / É uma atração de abismo / Aflui do magnetismo / Que sentimos sem sentir.”
 O poeta Datim, um afinado lírico entoando uma Valsa em Acorda Donzela: “Acorda, donzela / Que a noite é bela / Vem ver o luar // É cor de prata / Teu olhar me mata / Na beira do mar // És uma flor /  É meu primeiro amor /  Vivo a ti amar // Lá no retiro / Por ti suspiro /  Em meu coração // Por ti querida, / Eu perco a vida / E te aperto a mão // Teu bem querer / Me faz sofrer / Esta ingratidão.”
O poeta é o fio condutor das emoções e dos sentimentos e assim interage para transformar o seu rincão, como ele fazia nos versos brincalhões, aspergia alegria nas almas rústicas dos habitantes do Curral Velho ao versar sobre as “4” coisa do Mundo: “Tem 4 coisas no mundo / que tinha vontade de ver / Um jumento fazer ação / Um cavalo com fome correr / Um vaca dá leite /  Sem ela ter o que comer //  Tem 4 coisas no mundo / Que o homem fica contente / É trabalhar com uma foice amolada / Brigar com um homem valente / Casar com mulher bonita /  Namorar com moça quente //  Tem 4 coisas no mundo / Que o homem fica em pé / Carne de vaca gorda / Toucinho de porco baé / Com farinha de mandioca /  E os olhos de uma mulher.” Datim arrematava, numa finalização jocosa, tornando o poema mais regional: "Tem 4 coisas no mundo / que faz eu trocer o camim / uma rodia de cascavel / uma briga de guaxinim / dos bebos do Curral Velho / ser morador dos Bonfins"
Cheguei à conclusão que, no sagrado e profano chão do Distrito do Curral velho, se a gente examinar bem, esmiuçando como os arqueólogos, tudo há de se encontrar, que chova, que faça sol ou até que falte o ar!
E como disse o poeta francês Charles Boudelaire, mesmo que não se compreenda como as coisas misteriosas e maravilhosas ocorrem no celeiro de flores e espinhos dos Bonfim, a nossa obrigação é de admirar... E até mesmo de se espantar!

Raimundo Cândido

Luciano Bonfim disse...
Conheci estes senhores - principalmente convivi e, mesmo não sendo bom aluno, aprendi com eles o amor pela poesia. Do Tio Bastião [Bastiãozinho] ainda guardo uns versos escritos em "canhotos" de jogos da loteria esportiva. Do meu avô Joaquim Bonfim Filho, o vô Datim, trago as primeiras e mais fortes lembranças que a poesia pode suscitar em mim. Conduzido pelas suas mãos, vivi as batalhas de Carlos Magno e os 12 pares de França, conheci os encantos e mistérios da Donzela Teodora etc. Eduquei o meu ouvido para os ritmos e rimas através das suas "declamações" de cordéis reias ou imaginários . Meu primeiro livro traz a seguinte dedicatória: Para Joaquim Bonfim Filho, Datim Bonfim, meu avô e professor. Sei que não sou, nem serei bom aluno, mas continuarei tentando enganar a morte e encantar a vida através das luzes e sombras da poesia - poesia que a mim chegou primeiro através da[s] voz[es] destes 2 senhores. Salve a poesia! EvoéRaimundo Cândido.

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