Era uma vez um valente riacho,
tal potro selvagem a escramuçar pelo eito desolado do sertão, em luta insistente,
na laboriosa trilha e no resoluto curso vivificante até desaguar no leito
reticencioso do Rio Poti. Principiava, nas épocas oportunas, num pequeno monte
distante como um vidro mole que desce um aclive, cantando e rasgando o solo argiloso
do Curral Velho. A poesia sonora das águas é o próprio cadenciar melodioso das
sereias, suave, sedutor e convidativo. E o cantar do Riacho Serrote enfeitiçou os
Antônios, os Sebastiões e gerações inteiras da grandiosa família Bonfim. Do
tronco fundamental, tal qual Mourão de Aroeira, assentado na Casa Grande ao
lado esquerdo do Riacho Serrote, uma imensa taipa com madeirame atado em nós de
couro cru, ramificou-se a imensa descendência, sucessiva filiação diversificada
de trabalhadores braçais, sertanejos rudes, corajosos e honrados, donas de
casa, dignas mães de famílias, médicos, advogados, bancários, comerciantes, professores,
poetas, gente rica, gente pobre, gente culta, gente rude e algumas pessoas
sabidas e metidas a espertalhões, enfim: flores, muitas flores perfumadas, mas
vingou também os espinhos, como em todo grande roseiral que desabrocha pelo eito
dos Sertões de Crathéus.
Samuel Bonfim quando partiu do
Curral Velho para, na amplidão do mundo, ganhar à vida, já tinha as duas
grandes artes bem aprimoradas, profissões de habilidades manuais e fina
destreza mental: era um artífice na madeira, um carpinteiro talentoso, mas
tinha também o talento e esmero em subtrair o alheio.
Dizem-me, uns duendes
trapaceiros com quem tenho afinidades, que das águas que bebemos na infância
determinam-se as nossas qualidades. Então, segundo esses amigos invisíveis, as
habilidades do Samuel Bonfim são filhas das águas turvas do Riacho Serrote. Ele
perambulou com elas, suas competências, pelo planalto Central e até ajudou a
construir Brasília dos Candangos. Mas uma das artes sempre atrapalhava a outra
e teve que fugir para o distante Maranhão, onde também suas contradições, a
virtude do trabalho e a vil arte de surrupiar, fizeram com que retornasse
forcosamente, a cidade natal, a acolhedora Cratheús. Dizia,
para os amigos: “Andei pelo mundo, penei e paguei minhas penas! E de tanto perambular
perdi o penico e joguei a tampa no mato! Foi quando o conheci e
comecei a admirar a vivacidade e as habilidades, às vezes malvadas, do astuto
Samuel.
Assíduo freguês da bodega do
comerciante Chico Altino, na Rua Frei Viral, muitas vezes ri, às lagrimas, das
presepadas do Samuel. Enquanto não aparecia um freguês que lhe pagasse um
trago, ele tirava uma baladeira do bolso e disparava uma pedra em algum
esfomeado cachorro de rua que saia aos gritos num chamado bíblico: Caim! Caim!
Caim! Certo dia ele retira do bolso uma latinha de metal com torrado, coloca
uma pequena porção na mão e começa a cheirar. Uma curiosa senhora, ao lado de
uma ingênua menininha, pergunta: - O que é isso, Samuel? Ele responde: - É
rapé, minha senhora! Isso é feito com semente de imburana, fumo ralado, canela e
outros trelados! Coloca um pouquinho na mão da mulher, para ela experimentar. A
menina, inexperiente, também aspira um bocadinho do pó cinzento, foi o suficiente
para ela dá um grande espirro e, involuntariamente, soltar um estrondoso traque.
Desconfiada, se esconder atrás da saia da senhora. A bodega inteira riu! O
espirituoso Samuel, mais que depressa, retira outra latinha e diz: - Desculpe,
minha bichinha, esse aí que dei pra sua mãe é o que faz peidar, experimente
esse aqui que não peida não!
Esses são os momentos amenos
nas presepadas do astuto carpinteiro. O Chico do Guaraná contrata Samuel para
refazer o teto da casa, pois os cupins estavam devorando todos os caibros e as
ripas do telhado. Enquanto Samuel trabalha no teto os donos da casa trabalham
na rua e Samuel já notara as galinhas do quintal. Agarra uma penosa e coloca de
cabeça para baixo na sacola de material, dependurada no armador. Naquela
posição a galinha nem se mexe nem pia. No fim do dia, pega a sacola e vai
embora. A dona da casa percebeu o sumiço das galinhas e fica de olho no Samuel.
Ao fim do quinto dia, antes que ele desça do telhado, cutuca a sacola e a galinha se
estrebucha cacarejando: - Que arrumação é essa, Samuel? Essa galinha dentro da
sua bolsa! Ele logo se explica: - Ora ora minha Senhora, galinha é bicho
danado, deu vontade de pôr, aí ela entrou na minha sacola!
Samuel, se embriagado, andava
na companhia de seu irmão gêmeo e virtual chamado de Pedro. Quando o Luiz
Gonzaga Bonfim de Araujo, o gravatinha, trabalhava na Moageira Canário de Seu
Nereu, deixava que o Samuel Bonfim catasse os grãos de café que ficavam
espalhados pelo chão, caídos dos sacos, todos os dias e era um dinheirinho a
mais ao vender para as cafezeiras na feira. Naquele dia Samuel estava bem
calibrado pelo alto teor da cachaça Lagoa do Barro, e após colher os grãos
encostou a mão no peito do Luiz, como um forma de agradecer e ainda disse: - O
Samuel vem mais tarde!. O Seu Bidoca, ao
passar por ali, avisa ao Luiz que sua camisa estava manchada com pó de café
despertando-o para o desaparecimento da caríssima caneta argentina
esferográfica Sheaffer
do bolso. Gravatinha corre ao encontro de Samuel: - Primo vei, cadê
minha caneta? O que Samuel responde: - O Pedro escondeu... Vamos buscar!
Saíram, o Samuel na frente e o Gravatinha atrás, tangendo-o até o esconderijo
dos roubos nas ruínas da velha casa do Sr. Chico Antero na Rua José Coriolano
com a Rua Carlos Rolim.
Juramar Bonfim, também parente
de Samuel, o saúda:
- E aí, primo, como vão as
coisas?
Numa forma de se mostrar
cortês e dono de uma queixosa lábia, estava sempre espirituoso e brincalhão,
respondia com pilherias:
- Na terra que A for B, B for
C, C for D e nega dor dona, fode fora da feira quem for da família fodona!
O causo que mais marcou a vida
de Samuel, mitificando-o na história, foi seu encontro com outro famoso primo:
O Pe. Bonfim.
O Padre vinha da fazenda
Ponciano no seu Jipe Willys quando, lá pelo lado do Bairro dos Patriacas,
acabou a gasolina. Desespera-se, mas senti a providência divina quando avista o
Samuel caminhando ao seu encontro.
- Meu querido primo, graças a Deus que você
está aqui para me tirar desta situação! Pegue esse galão e esse dinheiro e me
faça o favor de comprar gasolina ali no posto da Rua Frei Vidal, que eu lhe
agradeço muito!
- É um prazer, ajudar o meu
primo vei Padre Bonfim.
O Samuel caminha rumo ao posto
e ao passar pelo Rio Poti que estava com água na altura dos joelhos, enche o
tambor com o líquido barrento, dá uns trocados a um menino e manda-o entregar o
galão ao Pe. Bonfim que despeja no tanque e tenta ligar o motor que tosse feito
um engasgado com asma: Uuuuummm tos tos tos....
Uuuuummm tos tos tos....
O Davi Bonfim estava com
vontade de comer carne, passa pelo frigorífico do Hamilton e compra uma chã de
dentro, a peça toda do colchão mole. Vê o Samuel e pede um obséquio:
- Samuel, me faça um favor, passa em casa e
deixa essa carne lá!
- Claro primo, pode deixar!
Ao chegar em casa o Davi
pergunta para a esposa pela carne que o Samuel tinha ido deixar para o almoço e a
mulher informa que na refeição daquele dia só tinha arroz e feijão.
Uns três dias depois, Davi
encontra o Samuel, andando pela rua:
- Samuel, tu é um sem-vergonha
mesmo, pedi para levar a carne lá para casa e você me enrolou!
- Não Senhor, você disse que
eu passasse em casa e deixasse a carne lá!
- Mas era na minha casa, cabra
safado!
- Ó rapaz, me desculpe! Agora
está sem jeito, nestas horas os meus meninos já comeram tudo!
No outono, quando os dias estão
mais cinzentos e as noites menos estreladas, nota-se a hora de se retirar. Doente,
deitado numa cama, apertando a mão de Mariazinha, a co-autora de muitos de suas estripulias
e olhando para teto da sua casinha, o folclórico Samuel parte, transpõe as
ripas e os caibros, os quais era exímio em fabricar. Deve ter voltado ao Curral
Velho e por lá se deixou ficar, a beber água do Riacho Serrote preparando
alguma nova presepada, pois é uma felicidade maravilhosa se podemos, ao fim de
tudo, ao fim da trilha, voltar como menino traquinas a nossas origens!
Raimundo Cândido
Regina Estela Bonfim disse...
Samuel... o perdulário e pródigo mais carismático que
conheci.
Nessa família tem de tudo mesmo.
Parabéns , Raimundinho
José Alberto de Souza disse...
Passa em casa (de quem?)
e deixa essa carne lá (aonde?),
sem deixar explícito o que queria,
cada um interpreta,
ora direis, à sua maneira!
Samuel... o perdulário e pródigo mais carismático que conheci.
ResponderExcluirNessa família tem de tudo mesmo.
Parabéns , Raimundinho
Regina Estela Bonfim
Passa em casa (de quem?)
ResponderExcluire deixa essa carne lá (aonde?),
sem deixar explícito o que queria,
cada um interpreta,
ora direis, à sua maneira!