quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Samuel, um Bonfim Astuto!


Era uma vez um valente riacho, tal potro selvagem a escramuçar pelo eito desolado do sertão, em luta insistente, na laboriosa trilha e no resoluto curso vivificante até desaguar no leito reticencioso do Rio Poti. Principiava, nas épocas oportunas, num pequeno monte distante como um vidro mole que desce um aclive, cantando e rasgando o solo argiloso do Curral Velho. A poesia sonora das águas é o próprio cadenciar melodioso das sereias, suave, sedutor e convidativo. E o cantar do Riacho Serrote enfeitiçou os Antônios, os Sebastiões e gerações inteiras da grandiosa família Bonfim. Do tronco fundamental, tal qual Mourão de Aroeira, assentado na Casa Grande ao lado esquerdo do Riacho Serrote, uma imensa taipa com madeirame atado em nós de couro cru, ramificou-se a imensa descendência, sucessiva filiação diversificada de trabalhadores braçais, sertanejos rudes, corajosos e honrados, donas de casa, dignas mães de famílias, médicos, advogados, bancários, comerciantes, professores, poetas, gente rica, gente pobre, gente culta, gente rude e algumas pessoas sabidas e metidas a espertalhões, enfim: flores, muitas flores perfumadas, mas vingou também os espinhos, como em todo grande roseiral que desabrocha pelo eito dos Sertões de Crathéus.
Samuel Bonfim quando partiu do Curral Velho para, na amplidão do mundo, ganhar à vida, já tinha as duas grandes artes bem aprimoradas, profissões de habilidades manuais e fina destreza mental: era um artífice na madeira, um carpinteiro talentoso, mas tinha também o talento e esmero em subtrair o alheio.
Dizem-me, uns duendes trapaceiros com quem tenho afinidades, que das águas que bebemos na infância determinam-se as nossas qualidades. Então, segundo esses amigos invisíveis, as habilidades do Samuel Bonfim são filhas das águas turvas do Riacho Serrote. Ele perambulou com elas, suas competências, pelo planalto Central e até ajudou a construir Brasília dos Candangos. Mas uma das artes sempre atrapalhava a outra e teve que fugir para o distante Maranhão, onde também suas contradições, a virtude do trabalho e a vil arte de surrupiar, fizeram com que retornasse forcosamente, a cidade natal, a acolhedora Cratheús. Dizia, para os amigos: “Andei pelo mundo, penei e paguei minhas penas! E de tanto perambular perdi o penico e joguei a tampa no mato! Foi quando o conheci e comecei a admirar a vivacidade e as habilidades, às vezes malvadas, do astuto Samuel.
Assíduo freguês da bodega do comerciante Chico Altino, na Rua Frei Viral, muitas vezes ri, às lagrimas, das presepadas do Samuel. Enquanto não aparecia um freguês que lhe pagasse um trago, ele tirava uma baladeira do bolso e disparava uma pedra em algum esfomeado cachorro de rua que saia aos gritos num chamado bíblico: Caim! Caim! Caim! Certo dia ele retira do bolso uma latinha de metal com torrado, coloca uma pequena porção na mão e começa a cheirar. Uma curiosa senhora, ao lado de uma ingênua menininha, pergunta: - O que é isso, Samuel? Ele responde: - É rapé, minha senhora! Isso é feito com semente de imburana, fumo ralado, canela e outros trelados! Coloca um pouquinho na mão da mulher, para ela experimentar. A menina, inexperiente, também aspira um bocadinho do pó cinzento, foi o suficiente para ela dá um grande espirro e, involuntariamente, soltar um estrondoso traque. Desconfiada, se esconder atrás da saia da senhora. A bodega inteira riu! O espirituoso Samuel, mais que depressa, retira outra latinha e diz: - Desculpe, minha bichinha, esse aí que dei pra sua mãe é o que faz peidar, experimente esse aqui que não peida não!
Esses são os momentos amenos nas presepadas do astuto carpinteiro. O Chico do Guaraná contrata Samuel para refazer o teto da casa, pois os cupins estavam devorando todos os caibros e as ripas do telhado. Enquanto Samuel trabalha no teto os donos da casa trabalham na rua e Samuel já notara as galinhas do quintal. Agarra uma penosa e coloca de cabeça para baixo na sacola de material, dependurada no armador. Naquela posição a galinha nem se mexe nem pia. No fim do dia, pega a sacola e vai embora. A dona da casa percebeu o sumiço das galinhas e fica de olho no Samuel. Ao fim do quinto dia, antes que ele desça do telhado, cutuca a sacola e a galinha se estrebucha cacarejando: - Que arrumação é essa, Samuel? Essa galinha dentro da sua bolsa! Ele logo se explica: - Ora ora minha Senhora, galinha é bicho danado, deu vontade de pôr, aí ela entrou na minha sacola!
Samuel, se embriagado, andava na companhia de seu irmão gêmeo e virtual chamado de Pedro. Quando o Luiz Gonzaga Bonfim de Araujo, o gravatinha, trabalhava na Moageira Canário de Seu Nereu, deixava que o Samuel Bonfim catasse os grãos de café que ficavam espalhados pelo chão, caídos dos sacos, todos os dias e era um dinheirinho a mais ao vender para as cafezeiras na feira. Naquele dia Samuel estava bem calibrado pelo alto teor da cachaça Lagoa do Barro, e após colher os grãos encostou a mão no peito do Luiz, como um forma de agradecer e ainda disse: - O Samuel vem mais tarde!.  O Seu Bidoca, ao passar por ali, avisa ao Luiz que sua camisa estava manchada com pó de café despertando-o para o desaparecimento da caríssima caneta argentina esferográfica Sheaffer do bolso. Gravatinha corre ao encontro de Samuel: - Primo vei, cadê minha caneta? O que Samuel responde: - O Pedro escondeu... Vamos buscar! Saíram, o Samuel na frente e o Gravatinha atrás, tangendo-o até o esconderijo dos roubos nas ruínas da velha casa do Sr. Chico Antero na Rua José Coriolano com a Rua Carlos Rolim.
Juramar Bonfim, também parente de Samuel, o saúda:
- E aí, primo, como vão as coisas?
Numa forma de se mostrar cortês e dono de uma queixosa lábia, estava sempre espirituoso e brincalhão, respondia com pilherias:
- Na terra que A for B, B for C, C for D e nega dor dona, fode fora da feira quem for da família fodona!
O causo que mais marcou a vida de Samuel, mitificando-o na história, foi seu encontro com outro famoso primo: O Pe. Bonfim.
O Padre vinha da fazenda Ponciano no seu Jipe Willys quando, lá pelo lado do Bairro dos Patriacas, acabou a gasolina. Desespera-se, mas senti a providência divina quando avista o Samuel caminhando ao seu encontro.
 - Meu querido primo, graças a Deus que você está aqui para me tirar desta situação! Pegue esse galão e esse dinheiro e me faça o favor de comprar gasolina ali no posto da Rua Frei Vidal, que eu lhe agradeço muito!
- É um prazer, ajudar o meu primo vei Padre Bonfim.
O Samuel caminha rumo ao posto e ao passar pelo Rio Poti que estava com água na altura dos joelhos, enche o tambor com o líquido barrento, dá uns trocados a um menino e manda-o entregar o galão ao Pe. Bonfim que despeja no tanque e tenta ligar o motor que tosse feito um engasgado com asma: Uuuuummm tos tos tos....  Uuuuummm tos tos tos....
O Davi Bonfim estava com vontade de comer carne, passa pelo frigorífico do Hamilton e compra uma chã de dentro, a peça toda do colchão mole. Vê o Samuel e pede um obséquio:
 - Samuel, me faça um favor, passa em casa e deixa essa carne lá!
 - Claro primo, pode deixar!
Ao chegar em casa o Davi pergunta para a esposa pela carne que o Samuel tinha ido deixar para o almoço e a mulher informa que na refeição daquele dia só tinha arroz e feijão.
Uns três dias depois, Davi encontra o Samuel, andando pela rua:
- Samuel, tu é um sem-vergonha mesmo, pedi para levar a carne lá para casa e você me enrolou!
- Não Senhor, você disse que eu passasse em casa e deixasse a carne lá!
- Mas era na minha casa, cabra safado!
- Ó rapaz, me desculpe! Agora está sem jeito, nestas horas os meus meninos já comeram tudo!
No outono, quando os dias estão mais cinzentos e as noites menos estreladas, nota-se a hora de se retirar. Doente, deitado numa cama, apertando a mão de Mariazinha, a co-autora de muitos de suas estripulias e olhando para teto da sua casinha, o folclórico Samuel parte, transpõe as ripas e os caibros, os quais era exímio em fabricar. Deve ter voltado ao Curral Velho e por lá se deixou ficar, a beber água do Riacho Serrote preparando alguma nova presepada, pois é uma felicidade maravilhosa se podemos, ao fim de tudo, ao fim da trilha, voltar como menino traquinas a nossas origens!


  Raimundo Cândido


Regina Estela Bonfim disse...
Samuel... o perdulário e pródigo mais carismático que conheci.
Nessa família tem de tudo mesmo.
Parabéns , Raimundinho

José Alberto de Souza disse...
Passa em casa (de quem?)
e deixa essa carne lá (aonde?),
sem deixar explícito o que queria,
cada um interpreta,
           ora direis, à sua maneira!

2 comentários:

  1. Samuel... o perdulário e pródigo mais carismático que conheci.
    Nessa família tem de tudo mesmo.
    Parabéns , Raimundinho
    Regina Estela Bonfim

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  2. Passa em casa (de quem?)
    e deixa essa carne lá (aonde?),
    sem deixar explícito o que queria,
    cada um interpreta,
    ora direis, à sua maneira!

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