quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Entardecer na Ibiapaba

 
            O boqueirão da Serra Grande engole as águas ralas do Poti que, em tempo, preenchem o sedento Poço do Piau, repleto de cacimbas de beber e da algazarra nos banhos das meninadas. O rio serpenteia sinuoso, marchando entre vertentes profundas, nas milenares gargantas pétreas que assustam o sertão sofredor e segue inabalável, rumo ao vizinho Estado do Piauí.  
Assentado na margem esquerda, o povoado da Ibiapaba vê, com desânimo n’alma, o passar interrupto do Poti. Sem solenidade de despedida, sem choro de adeus, observa fluir, rapidamente, o sangue das sístoles invernosas, entre um suspiro de vida e o arquejar da morte. Como no caririense Rio Jaguaribe, de Demócrito Rocha, há décadas que se espera uma providente pinça hemostática: um salvador Lago de Fronteiras a recuperar os séculos perdidos!
Antes, era um singelo lugarejo chamado Barrinha, com a Casa Mocha no lugar do melancólico Mercado. Hoje, a Ibiapaba sonha em se tornar um próspero município, coisa que já poderia ter acontecido, se a politicagem infame não desejasse somente os votos do humilde cidadão que labuta no sertão.
E o tempo passa, inevitável e célere. E as coisas dificilmente mudam no sopé da Serra Azul. E a enxada sua na empreitada das imprecisas horas de sol inclemente, no incerto mundo de meu Deus.  
Na Ibiapada, na hora do crepúsculo vespertino, mal o sol se põe, as cadeiras já estão espalhadas pelas calçadas. É o instante em que o povo humilde deságua as aflições do dia-a-dia, mirando o fluir dos trilhos que correm paralelos ao Poti, carregando a esperança do ibiapabano. Sentados nas calçadas ouvem-se lorotas, chistes, gracejos, causos e as estórias centenas de vezes contadas, mil vezes repetidas, mas sempre escutadas como se fossem a primeira vez, audição atenta, olhos brilhando e a alma repleta de felicidade, no agreste dos sertões de Cratheús.
O calçadão alto da casa de Abdias Frauzino está repleto de ouvintes para as narrações divertidas de Zé Moisés, um contador de histórias da Ibiapaba. Um típico sertanejo, raquítico, de baixa estatura e o olhar cansado de quem muito padeceu e, tal qual o Patativa de Assaré, sem o dom e a arte confundir-se-ia com um simples lavrador do sertão. Contar historia requer sensibilidade e um alto poder de encantamento, isso é dote. Abrem-se os olhos de ouvir e os ouvidos de ver.
- Zé, e a cobra que te mordeu, como foi? Alguém puxa conversa, senão a sessão de contação de estórias, no entardecer da Ibiapaba, não começa.
Zé Moisés se ajeita na cadeira, olhando a platéia numerosa, os mesmos rostos de sempre para ouvir uma história repetida, mas sempre renovada como a ânsia de quem reza uma oração e se robustece em cada vez que é repetida. O narrador começa:
- Estávamos plantando uns pés de algodão. De repente pisei numa grande touça seca de mameleiro. Em pouco tempo, olhei para meu companheiro de roçado e alarmei:
- Manoel, eu estou ficando com o meu pé dormentizim!
- Valha seu Zé! E o que é?
- Rapaz, eu não sei não!
Encostei-me por ali e lá vem aquela coisa ruim, a coisa pior do mundo. Já estava passando a mão nos olhos:
- Valha-me Deus! Será que vou cegar? Que foi isso que me feroou?
Ainda vi a ruma de cascavel embolada debaixo dos galhos secos de mameleiro e gritei:
- Chega depressa aqui, Manoelzinho!
- Que foi seu Zé? O senhor se cortou?
- Mas antes fosse! Olhe aí! Foi esse animal que me mordeu?
Matamos a cascavel e contamos sete enrusgas no chocalho.
- Vamos logo seu Zé, suba na minha moto, vamos passar primeiro em casa e de lá vamos ao Posto de Ipaporanga, que é mais perto. Mas cuidado com a minha mãe, ela é tiro e queda para quem está com veneno de cobra.
O enfermeiro de Ipaporanga foi logo perguntando que cobra foi que picou. Quando viu o chocalho, alarmou:
- Seu Zé, o senhor é o velho de mais coragem que já vi até hoje! Uma hora destas e ainda desse jeito! Vou lhe mandar para Crateús na ambulância, pois estamos sem o soro antiofídico.
- Dr. posso beber um pouco d’água, não aguento mais tanta sede! Perguntei.
- Nem fale isso! Se você beber é um homem morto!
O motorista da ambulância correu feito um desembestado, a poeira subia na estrada, e eu pensei que a gente ia morrer era na viagem.
Em Crateús, perguntaram a minha idade. Tenho 72 anos, respondi. Aplicaram uma injeção, que não tinha tamanho, nos meus quartos que ainda hoje a agulha está aqui. Em pouco tempo enguiçou tudo, eu fiquei duro, durinho, todo enjambrado de duro.
Na calçada enquanto o Zé conta a história, um ajudante, destes metido a enxerido, vai, simultaneamente, recheado a narrativa alheia de complementos seus:
- São 40 dias de perigo! E os piores são o primeiro e o derradeiro!
A platéia ri. Concentra-se e ri novamente dos trejeitos dos atores.
O contador retoma o fio da meada. Quando um médico passou por mim foi logo perguntando: - O senhor está melhor, meu amigo?
- Tô lá nada, doutô! Agora tô é pior! E fui puxando as capelas dos olhos que já estavam pregadas! Quando meus olhos se abriram é que a coisa ficou feia. Falei para um dos homens vestido de branco: - No lugar de ver um enfermeiro, agora estou vendo é dois? E ele me disse:
- Eu fico é satisfeito, que esteja vendo dois!
- Valha, o senhor fica satisfeito que eu veja duas marmotas?
- É sim! Agora eu ficaria triste se o senhor não tivesse vendo nada!
- Mas me diga uma coisa: Eu vou ficar vendo dois todo tempo?
(Os risos prazenteiros da platéia ecoam no silêncio do povoado e se espalham pelas águas barrentas do Poço do Piau) 
- Quando voltei para casa vi que até a minha roupa tinha ficado com a catinga da cobra. Ele termina a primeira narrativa da noitada.
Enquanto uma história puxa a outra, a noite desce sobre o tranquilo lugarejo, e é quando notam que é hora de repousar para mais um dia de labuta.
No cair da tarde de amanhã, quando as sombras da Serra Grande cobrirem os telhados enegrecidos das casas da antiga Barrinha, o duende Zé estará pronto para mais uma mágica sessão de estórias e peripécias na velha vila, onde um arruinado cruzeiro de aroeira relembra a caminhada do capuchinho Frei Vidal da Penha, que peregrinava rumo à Cratheús. E se você quiser sorrir, gargalhar de contentamento arrebatado dos causos do Zé Moisés, é só ir lá e comprovar o dom de um contador de estórias nas tardes impregnadas de melancolia no entardecer da Ibiapaba.

Raimundo Cândido 

Sebastião César Aguiar Vale disse... 
Raimundinho: O rio Jaguaribe não é um rio caririense; é jaguaribano e nasce onde nasce o rio Poti, na mesma Serra da Joaninha. É um pra lá e outro pra cá. Mas, você não é geógrafo, e sim, matemático, não tem importância. O Rio que vem do Cariri é o rio Salgado, que despeja no Jaguaribe (acho que sim). Um abraço jaguaribano e caririense pra você.

Chico Pascoal disse...
Conheci o seu Zé Moisés. Eu era menino.

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