sábado, 8 de fevereiro de 2014

O Oficio de Rastrear

                                                     
                Quem sabe dos segredos do sertão é porque nasceu com uma preciosa dádiva, um raro dom de ver-olhar, olhar e ver. Só podemos captar o que não está à mostra, o que não se divisa, quando podemos sabê-lo, pressentir o invisível. E para se pressagiar assim, é preciso pensar. Raciocinar com o sexto-sentido conectado aos elementos da terra, às vibrações do ar e às essências dos mistérios que revelam os indícios do que não se pode ver.
                A humana criatura foi perdendo esse dom, hoje incorporado as insensíveis máquinas tecnológicas que, simplesmente olham, captam e realizam o que tem que fazer, sem a mínima descrença em si, mas privadas da doce contemplação ou do inesperado espanto! Chamam-na de nanotecnologia e já é parte integrante do corpo humano. Numa engrenagem menor que um grão de arroz, dissimulada no corpo, guardam-se todas as informações de um cidadão: nome, endereço, árvore genealógica, tipo sanguíneo, histórico de medicamentos, RG, CPF, senha de bancos e um localizador, com Sistema de Posicionamento Global viam satélite, o GPS, fazendo com que esta pessoa possa ser escaneada, rastreada em qualquer ponto do Planeta.
Se o sábio filósofo Aristóteles, que achava ser o coração a mola mestra dos pensamentos e dos sentimentos, tivesse imaginado que, um dia, alguém caminhasse pela face da terra com um chip implantado na pele ou com um motorzinho de titânio e plástico acoplado na caixa torácica, fazendo um vruuum, no lugar do característico tum tum tum entre a sístole e a diástole, diria a mesma coisa que muitos crentes alardeiam, exageradamente, por aí: - É a marca da besta ferra! Isto é o sinal do anti-Cristo!!!
Um bom rastreador, outrora, usava uma visão apurada, um faro aguçado e o espírito em total alerta para seguir uma trilha deixada por uma caça ou por uma pessoa perdida na Caatinga. Virgulino Ferreira da Silva, o famigerado Lampião, que sobreviveu por quase vinte anos lutando e fugindo pelo sertão nordestino, tinha mais ódio dos rastreadores das volantes do que dos próprios policiais que o perseguiam. Proferia colérico: - Quem eliminar um desgraçado de um rastreador terá matado uns cem macacos!
Para despistá-los, o bando usava todo tipo de artimanhas: invertiam a posição do salto das alpercatas, pisavam somente no chão duro, sobre o mesmo rastro para parecer o caminhar de um só homem e, quase sempre, o último cangaceiro da fila apagava as pisadas que iam ficando, com uns galhos folhudos. Andavam dezenas de quilômetros por dia despistando os rastreadores, num silêncio quase sepulcral. Mas cometeram um pecado mortal, para quem queria desnortear os “cães” farejadores das volantes: como raramente tomavam banho, para tirar o cheiro forte sob os trajes de couro cru, despejavam vidros de perfumes sobre o corpo! Só poderia dá no que deu, foram pegues de “assalto” no pedregal da Grota de Angicos, por 45 macacos conduzidos pelo legendário rastreador pernambucano Antônio Cassiano. Nem a Oração da Pedra Cristalina, encontrada no bolso de Virgulino, fechou o corpo do cangaceiro contra as balas das metralhadoras e o faro dos rastreadores da Caatinga.
Os Sertões de Crateús sempre foram afamados pelos seus rastreadores. Eles tinham um lema: Se voar, deixa sombras. Se andar, deixa rastros.  O de mais remota memória chamava-se Alfinete, que rastreava bichos, gente e até visagens. Numa acirrada briga política entre dois Partidos Políticos: o Conservador, apelidado de Marretas, e o Liberal do Pe. Inácio Ribeiro de Melo, o padre levou a melhor e venceu o preito de 1849, com uma grande maioria de votos. A oposição resolve processar o Pe. Inácio e tentam enquadrá-lo nos crimes do irmão, o famigerado Cascavel. Há oito dias que o Pe. Inácio partira ao encontro do Juiz de Piacó, recém nomeado para essa região, para relatar a situação caótica de Crateús e se livrar de um “arranjado” júri popular.  O ferrenho adversário, Pe. Francisco Santiago, convoca o rastreador Alfinete para conduzir um bando de assassinos na perseguição do Padre Inácio. O tempo apaga os vestígios, a aspereza do sertão engole os rastros e o dom de olhar-ver tem que estar bem apurado, principalmente quanto o sol escaldante e o relento da madrugada dissipa estas marcas efêmeras. A visão microscópica, o sentido farejador, o senso de percepção detectam os rastros deixados pelo padre como se fossem pisadas recentes. Já próximo de Sousa-PB, nas margens de um riacho, sob as sombras de frondosas oiticicas, os assassinos executam a infeliz missão, com requinte de uma inenarrável perversidade.
No celebre livro Notas de Viagem, de Antônio Bezerra, encontramos mais um velho rastejador dos Sertões de Crateús, e chamava-se Bernadino. Ele decifrou um bárbaro crime, após um tarrafeiro pescar uma perna de um poço do Rio Poti. Bernadinho foi incumbido de rastrear o assassino, pelas pegadas que partiam das margéns e, o incrível, foi que ele relatou toda história, como se tivesse vendo “in loco”, até chegar ao filho do dono de uma fazenda, a 60 km do local do delito. O assassino confirmou tudo, como Bernardino havia decifrado.
 No município de Tamboril, o Senhor Francisco Pedrosa amalucara de vez.  Enlouquecera de tal forma que pegava uma faca e dizia que ia se matar. Certo dia ele desapareceu e entrou sem rumo pela Caatinga adentro. A família procurara por toda parte e já perdera a esperança de encontrá-lo vivo. Alguém se lembra do velho Bernadino, que sai em seu encalço, prometendo encontrá-lo. O rastrejador disse que ficou zonzo e sentiu o que é ser um zuruó por tantos ziguezagues, tantos vai e vem, passando pelo mesmo ponto e seguindo seu rastro. Bernadino vai encontrar o amalucado quando o rastro resolve partir na direção do Serrote Feiticeiro e acha-o, no alto dos íngremes lajedos, sentado numa pedra, olhando o precipício, em iminente perigo de vida. E como havia prometido, restitui o maluco a sua família, não tão são, mas salvo.    
No sumiço de um animal, daqueles propensos a fugir do curral ou quando tangido por espertalhões, logo chamavam um rastreador da região. Sempre que os bodes de Zé Ivan Melo fugiam, ninguém achava e ele ordenava: - Oh Menino, chame ali o Altino, filho do Aureliano dos Anjos. Altino partia rumo à Serra da Ibiapaba, esmiuçando o chão e sempre voltava com os bodes fujões.
Para fazer vida no sertão o trabalho do cidadão é árduo, é duro, principalmente para quem é honesto e não tem uma herança em vista. O boiadeiro Raimundo Cuímba, quando vinha do Piauí, sempre trazia uma ou duas vaquinha, para revender em Crateús e nunca passava disso. Um dia Milton Menezes cavalga ao lado do grande rastreador Firmino dos Anjos, que caminha cabisbaixo, concentrado nos veredas do caminho. Súbito, Firmino levanta a cabeça e afirma: — Mas menino, pois num é que o Raimundo Cuímba agora cresceu os olhos! Desta vez ele veio tangendo doze vaquinhas.  Vão até o curral em que está o gado, cansado da viagem e contam: Uma, duas... Doze! Com espanto nos olhos Milton afirma:
— Como é que pode? Isso só acontece se for adivinhando!!!
Como o velho Bernadino do livro de Antonio Bezerra, Firmino dos Anjos também tinha o olhar microscópico, igual ao do irmão Lauriano, um dom de família, sabiam olhar e ver o que ninguém mais via. Quando o menino que Dona Donana criava desapareceu, tomou rumo ignorado pelas veredas do Pereiros, Firmino aguçou a vista e, como fazem os carcarás caçando calando entre os gravetos do sertão, pegou o fio da meada e seguiu até achar o coitado perdido no meio do mato, com um assombro maior que a fome e a sede que o devorava.
Um dia resolveram testar o oficio de Firmino. Havia morrido um cavalo velho pelas redondezas. Pegaram os cascos do finado e fizeram umas marcas numa cacimba de gado. Chamaram o rastreador dos Pereiros: — Firmino, nós encontramos uns rastros de um animal ali. Parece que o cavalo não é daqui não! Você quer olhar? 
Foram lá, ver. Firmino examina, detalhadamente, sente os elementos da terra, as vibrações do ar, e a essência do mistério revela-se como que milagre, aos olhos que brilham numa sentença:
— Eh, rapazes... Esse cavalo velho, aqui, está com um bocado de tempo que morreu!

Raimundo Cândido

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